Exibido em caráter hors-concours durante a sessão de encerramento do último Festival Internacional de Cinema de Berlim, La Voie Lactie leva-nos à comparação óbvia de Buñuel com o vinho - quanto mais velho... Nestes últimos anos, logo abaixo de Uma Odisséia no Espaço, e lado a lado com fitas como, Teorema ou Persona, é das coisas mais sérias que o cinema nos proporcionou.
São 103 minutos de projeção-peregrinação com a excelente fotografia de Christian Matras. Espaço-tempo, viagem-histórica e, no todo, a abertura para a dúvida; não mais o Buñuel dos dogmas, dos anti-todos-os-valôres-aceitos, mas o esfôrço de meditar e procurar. Sem, é claro, deixar de escandalizar, pois o escânda-lo, como até invoca Pasolini, deve ser o sinônimo de deus ou da informação nova.
Na técnica, estamos diante de uma linguagem que se consiste num desenvolvimento do método apresentado em Belle du Jour, com o rompimento de qualquer critério imediatista de lógica no relacionamento entre várias cenas. No campo referencial, o filme junta-se ao radicalismo da maior obra do diretor, L'Age D'Or, despojado, no entanto, da fúria dogmática vazada, em grande parte, no processo surrealista. A Via Láctea é mais plácida, como, aliás, convém à idade de Buñuel. Também mais intelectual, onde o savoir faire alia-se à reflexão bem impostacla. Encanta e faz pensar - é básico.
A história diz respeito à peregrinação encetada por dois maltrapilhos (Paul Frankeur e Laurent Terzieff), na época de hoje, em direção à meta medieval de Santiago de Compostela. A caminhada inicia-se pelas auto-estradas da França. Durante o trajeto, o tempo real começa a se diluir e abre-se um espaço onde assistem a cenas e cerimônias insólitas. Em paralelo, a peregrinação e cela de um Cristo informal e desinibido, acompanhado dos amigos. Assistem a uma missa católica que termina em orgia pagã, que corresponde a uma seita herética da Espanha no século IV. Vêem a auto-imolação, na cruz, de um freira, logo seguida por um duelo, à espada, entre dois teólogos do século XVII, luta provocada simplesmente pela divergência de idéias. Ao mesmo tempo, numa sequência incisiva, emerge a figura do Marquês de Sade, dizendo as suas verdades a uma vítima. E quando, ao fim, tombam em cima de uma meretriz, depois dos episódios mais impressionantes, cai sobre os espectadores a chave de ouro da ambiguidade. O que é cêrto?
Depois do episódio tragicômico em tôrno da proibição de Teorema, não sabemos o que acontecerá com A Via Láctea no Brasil. De qualquer forma, é um marco nestes útimos tempos, com ou sem censores.
Correio da Manhã
06/08/1969