Talvez seja Domingos de Oliveira o cineasta nosso que, no momento, melhor domine a técnica. Essa demonstração de know-how, savoir faire, já havia emergido com a ótima surprêsa que foi, na época, Tôdas as Mulheres do Mundo, seguido de Edu, Coração de Ouro. Agora, As duas Faces da Moeda não só corrobora tudo isso, em nível mais elevado, como também denota a extrema sensibilidade na utilização de certos recursos. Em primeiro lugar, o detalhe: mãos, caixas de fósforos mostradores, pontas de cigarros; em segundo, o uso do close-up: os melhores de Adriana Prieto estão neste filme, bem como a decomposição dramática do protagonista vivido por Fregolente; em terceiro: o emolduramento funcional, mormente no início da fita, usando apenas parte da tela, sem que o setor neutro do quadro deixe de possuir atuação; também os movimentos de câmera: há um travellin lento esgueirando-se entre portas e paredes, enquanto, no fundo, Canaverde faz as contas exemplar em sua concepção.
Tudo isso permitiu que, com um sentido de conjunto bem captado, As Duas Faces da Moeda resultasse num filme muito bom, admirável mesmo em certas passagens, e que, dada a linha do argumento, constituiu um tour de force da equipe de realização. A retrodisséia de um funcionário público de 50 anos, cujo dia a dia era a mediocridade e a carência de perspectiva. Um anjo, algo burlesco e caricato, avisa-lhe, em sonho, da morte próxima e, êle, rompe as barreiras de contencão e decide criar um clímax real em sua vida. Para o papel principal, difícil, era necessário um excelente ator. Domingos ele Oliveira foi encontrá- lo de fato em Fregolente, que na batida de um Emil Jannings concretiza uma das maiores interpretações que já vimos na história do cinema brasileiro. Ao contrário da exuberância do homem grosso, em que o achamos – também magnífico - em papéis anteriores (e é, provadamente, um dos grandes atôres para Nelson Rodrigues), aqui surge, quase sempre autocontrolado introspectivo, e transmitindo o máximo elo personagem. No caso, trata-se de fita onde o ator principal é um sustentáculo radial do êxito.
Em alguns instantes ou cenas, como a da luta alegórica do protagonista com o anjo, Domingos de Oliveira estava a um passo do mau gôsto, mas conseguiu sair-se intacto. Ajudou-o muito, também, a foto de Dib Iufti e, em especial, a ótima faixa sonora organizada por Joaquim Assis. Contribuições básicas para formular aquela sensação motovisual do horror e distanciamento do cotidiano, da rotina contingente. Mas se a moeda da vida tem duas faces, existir é resistir, nunca desistir. Isto procura incentivar o filme, sem tombar no lugar comum. Os outros intérpretes - com mais altos do que baixos, às vezes prejudicados pela sincronização - auxiliam no tom ele convincência da parábola: Neuza Amaral, Adriana Prieto, Nazareth Ohana, Oduvaldo Viana Filho, Jorge Dória, João Bethencourt e Hélio Ary.
Correio da Manhã
12/11/1969