Bullit é expressão filme do cinema sadio, desvinculado de tudo que não seja aquela disposição de chocar e deleitar, através dos efeitos imediatos que propiciam os recursos materiais da indústria. Vejamos o exemplo dos tiros. Talvez, com relação à cena da morte de Paredão, em Shane, tenha sido neste clássico de George Stevens a primeira sequência exuberante do tiro realista, onde o impacto das balas projeta a vítima a determinada distância. Depois, ultimamente, o cinema se especializou até em exagerar tal realismo. Em lugar do enfoque lírico e contorcionista - mas quase indeslocável no espaço - com que era captada a vítima das armas de fogo, o corpo passou a virar uma espécie de objeto lançado brevemente no ar. Há pouco, comprovou-se em The Desperados a mesma coisa: sangue em profusão, corpos projetados. Ruy Guerra, em Os Fuzis, conferiu uma das melhores tônicas da violência, na cena da matança do gaúcho. Em Bullit, a crueza da apresentação da arma de fogo em funcionamento, com o impacto das balas, já é frisante, desde a passagem inicial, onde os matadores invadem o quarto do hotel e fuzilam Ross e seu guarda-costas, a prenunciar o show de ação e violência.
A perseguição de carros merece ainda mais realce: é antológica para o cinema. Há pouco, numa fita mais despretenciosa, como The Split, havia também uma perseguição de veículos, com os entrechoques propositados. Bullit repisa a dose, indo mais longe dentro da concepção de tomadas – os carros deslizam no ar entre actives e declives, dão o dó de peito das derrapagens, até o incêndio e destruição daquele dos assassinos. Coisas que ainda e só o cinema americano proporciona.
O entrecho e o espírito da obra não deixam de, clara ou veladamente, transmitir uma crítica da própria violência, como dos interesses políticos e corruptos que maculam a ação policial. No caso, trata-se, no entanto, de uma recorrência en passant, mesmo porque o objetivo da realização não é polêmico, nem realista. Pelo contrário, Bullit constitui praticamente uma alegoria, eufórica, da luta entre o sistema da lei, encarnado pelos policiais, e aquêles, marginais. O herói, frio, quieto, eficiente, impenetrável nas reações, é o personagem-mito encorpado por Steve McQueen. Técnica, fairplay, elegância. Prestes a ser bondiano, não fôsse o mínimo de consciência de sua condição de vida, acusada pela mulher (Jacqueline Bisset) numa cena-intervalo dentro do plot. McQueen está à vontade no papel, assim como Simon Oakland (o jornalista que acompanha Susan Hayward, em I Want to Live) como o capitão que o apóia nas investigações, ou Don Gordon, como o principal auxiliar. Robert Vaughn, o Napoleon Solo da série de espionagem da Metro, aparece, razoável, como a face politiqueira dentro do sistema legal.
O sucesso désle filme junto ao público – está há semanas em cartaz - reforça aquêle teor do espetáculo, que é um falor ontológico do cinema, quando então até as ousadias fotográficas (distorções, flou, emprêgo da grande angular, enquadramentos arrojados, wellesianos) são aceitas com a maior naturalidade, dado o ritmo de tensão em tôrno das situações, encadeadas pela perseguição, crueza e violência. E essa mesma violência, dentro do filme, contra a qual, vez por outra, se erguem os pruridos moralistas ou falsamente moralistas, revela-se novamente como elemento essencial à concepção espetacular, desde que funcional no sentido da estrutura planejada para a obra. Pois a violência não é apenas catarse, show de técnica motovisual e sonora, mas também pode funcionar como denúncia e - talvez acima de tudo - antídoto, vacina, tranquilizante para a própria violência contingente na vida real. Sem haver atingido o nível inventivo de Coogan's Bluff (Meu Nome é Coogan) de Donald Siegel. Bullit firma-se como uma das obras mais destacadas no gênero, nesta última safra, colocando também em relêvo o nome do diretor Peter Yates.
Correio da Manhã
13/11/1969