Depois de Briggite Bardot, a outra grande contribuição que Roger Vadim fêz ao estrelismo cinematográfico foi Catherine Deneuve, que estreou com êste diretor em Le Vice et Ia Vertu. Nesta fita, a figura estaticamente ingênua de Catherine prestava-se à associação de sua personalidade com a da boa mocinha na tela: O futuro veio a demonstrar que não era so isto: a sua grande fase de atriz inicia-se praticamente em papéis de mulher íntima com o "vício", ou melhor dizendo, fria, neurótica, amoral, objetiva, antiromântica. Basta lembrar Benjamin ou o notável Belle de Jour, de Buñuel.
E retorna, outra vez, na mesma toada, com êste agradável Manon 70, de Jean Aurel. O romance do Abade Prevost já havia sido fartamente aproveitado no écran, inclusive como filmagem da ópera de Massenet (e existe também a Manon Lescaut, de Puccini). Também a própria modernização do tema já tinha sido motivo de uma realização de Henri-Georges Clouzot, há cêrca de 20 anos, mediante o lançamento publicitário de uma atriz, Cécile Aubry, que nunca mais demonstrou qualquer talento e sumiu do mapa cinematográfico. Agora, a modernização de Jean Aurel apresenta uma outra alteração, ou seja, a inserção do happy-ending, cuja função é exatamente aquela de conferir o toque amoral ao filme.
A meretriz, o gigolô e o "outro", sempre mutável, de acôrdo com as exigências. Isto é que Des Grieux (Samki Frey) entenderá no desfecho, quando, depois de muito brigar com a amada por causa dos outros homens, vem a se enquadrar naquela carona simbólica que pegam na última imagem (ou viagem para o amor de aluguel).
Na cena em que Manon, por detrás da porta, observa Des Grieux no quarto, despido com a amante sueca de ocasião, esta vai fumar o proverbial cigarro e diz que "se o seu noivo soubesse ficaria furioso". Ele pensa que é por causa de estarem dormindo "juntos, mas ela explica: "não quer que eu fume". Daqui há quanto tempo uma cena dessas, um diálogo dêsses, poderá ser normal, por exemplo, na Sicília? Isto é espaço-tempo. Dai porque o happy-ending de Aurel não deixa de formular a sua mensagem óbvia: aquela de que, hoje, na era da informação, da segunda revolução industrial, seria muito raro acontecer, nas cidades desenvolvidas, a tragédia do Abade Prevost.
De resto, o filme em si. E que, em grande parte, é Manon, ou melhor, Catherine, estação de encantamento. A sua leveza, a mobilidade facial, a ubiquidade de maripôsa, o olhar que é muito. Além disso, o sub-reptício desfile de modas em que também se caracteriza Manon 70, desde a apresentação dos créditos, muito bem sacada com os títulos esgueirandose, emergindo, por entre as pernas das modelos que trocam apressadamente de roupa no vestiário. Boa a fotografia de Edmond Richard. Quanto aos intérpretes, pouco mais a dizer. Paul Hubschmid e Robert Webber estão intencionalmente caricatos como os dois principais fornecedores de luxo à gata loura. Jean-Claude Brialy repete-se como de hábito e a vontade de ser Pierre Brasseur (principalmente o Lemaitre de Les Enfants du Paradis) já se dilui na falta de gás e garra. Música de Vivaldi e Carlos Seixas, sublinhando um filme que é boa recreação, com pitadas disfarçadas de filosofia.
Correio da Manhã
30/09/1969