O argumento de Charly, baseado no romance Flowers for Algernon, de Hank Spitz, é bem interessante. Aborda a história da recuperação de um retardado mental dentro de uma clínica, graças à dedicação de uma assistente (Claire Bloom) e da operação revolucionária que um médico executa em seu cérebro. Algernon, o nome a que se refere o título irônico do livro, é um daqueles ratinhos brancos, cobaia de escol, com a qual, na fase inicial, pré-operatória, Charly (Cliff Robertson) compete no quebra-cabeças e sempre perde.
Hoje em dia, a abordagem de problemas psicológicos no cinema é um fato instigante, não só devido ao suporte visual do filme, como à pesquisa da conduta, naquela única forma de arte, que, como assinalou Merleau-Ponty, propicia o comportamento do indivíduo. Mas a abordagem da questão do retardamento mental, pelo menos no nível mais elevado, às vêzes quase didático-documental e contendo algumas informações científicas, parece que era inédita antes de Charly. Até por motivos de indução ao espetáculo e maior alcance comercial, grande parte dos filmes tendia para coisas mais acessiveis ao nível romantesco, tais como paranóia, esquizofrenia, tara sexual ou a ''fossa", na qual Antonioni se tornou o grande especialista.
Esta fita de Ralph Nelson, todavia, perde oportunidade de um enfoque ou mesmo efeitos de maior envergadura. De um lado, logo em decorrência de situações forçadas, até psicologicamente inverossímeis, mantidas ou forjadas pelo roteiro de Stirling Silliphant. De outro lado, pelas hesitações e por uma certa timidez do próprio diretor, que em nenhum momento soube definir-se, ou pela vertente analítica do entrecho ou pela construção puramente dramática. Na hora, por exemplo, em que o protagonista defronta-se com o congresso de cientistas, parece-nos algo despropositado, não só o tratamento da iluminação, que põe a audiência inquisidora nas trevas, e Charly, no palco, sob os holofotes, como também a modalidade de perguntas, até em tom irônico ou agressivo que lhe são desfechadas. Aí então ele faz o discursozinho sôbre as contradições do progresso, robotização do homem etc, etc. Nem é convincente que um homem, como tal, suprepreparado para de retardado, tornar-se ultra-inteligente tenha sido mantido pelos psicólogos em estado afetivo bastante primário, ex-vi as relações com a môça na primeira parte da trama, e a tentativa violenta de possuí-la.
Em tudo, o melhor mesmo é a conduta de Cliff Robertson, enquanto figurando magnificamente o retardado (pois, quando fica inteligente, a sua interpretação vai, paradoxalmente, ficando inexpressiva).
Correio da Manhã
10/09/1969