Rever O Ébrio é interessante, sob um aspecto documental, pois é evidente que qualquer espectador alfabetizado permanece imune ao transe catártico. Esse caráter documental não deve ser tomado ao pé da letra, isto é, cinedocumentário, mas naquilo que faz invocar o filme como máquina do tempo.
O primeiro aspecto é, logo, ver (e ouvir) Vicente Celestino, um dos maiores e mais duradouramente famosos cantores da nossa música popular. Ele, aliás, não canta muito nesta fita: além da canção-título, O Ébrio (e que, para o filme em si, também tornou-se canção-tema), interpreta Porta Aberta e pequenos trechos de outras composições, uma delas a não menos conhecida Patativa. Comprova-se nas letras e na armação estrófica das peças de Vicente Celestino a influência de um grande compositor no gênero, Cândido das Neves "Índio", do qual, inclusive, ele gravou inúmeras criações.
Em segundo lugar, vem a feição museológica, ou seja, ver um determinado maneirismo primitivo do nosso cinema. O enrêdo, evidentemente, é ingênuo e a própria aberração dramática das situações lembra bastante as próprias letras de Vicente Celestino. Um homem pobre, filho de grande fazendeiro arruinado, a quem os parentes fecham a porta, mas que é acolhido e hospedado por um padre. Depois, revela-se como cantor num programa de calouros, fica rico, torna-se médico não menos consagrado e casa-se com a enfermeira. Esta, vítima de um ardil simplório, preparado por um gigolô, primo do marido, abandona-o em favor do cáften. O protaonista, desiludido, muda de identidade com um maltrapilho atropelado e vaga pelas ruas e tabernas, bêbedo, até que um dia, após cantar a canção-título, reencontra a mulher na miséria. Essa pede-lhe perdão - êle concede, "mas não reconcilia", sutileza concreta que funciona como chave de ouro. A fita apresenta também, no fluxo da tragédia, inúmeros lances cômicos e caricatos, principalmente a cargo de Walter D'Avila, então no início da carreira. Há coisas deliciosas do primitivismo, como um telefone que toca, a pessoa atende e entra, como fundo musical, uma valsa de Strauss. Ou a ingenuidade tipo teatro de revista da época com Walter D'Avila levando uma cebola para conseguir chorar na missa de sétimo dia ou o tabelião gago que lê o testamento. A parte final da fita, com os bêbedos está bem dirigida e Manuel Vieira faz uma boa aparição.
Hoje, o cinema não pode ser mais tão ingênuo e implório em sua fábula, mesmo com diretores primitivos. Por isso, volteando O Ébrio, ficou o tal halo do passado .
Correio da Manhã
07/08/1969