O assunto dublagem volta à tona por causa do decreto, do Governo que facultou a sua institucionalização. Volta, assim, também o debate à tona. Há dois aspectos de se encarar a questão: o criativo e o econômico. No primeiro caso, praticamente inexiste o que discutir ao nível do bom senso: a dublagem simplesmente deforma (quando, no caso do Brasil, não torna ridículas) as obras cinematográficas. Então, na hipótese de cineastas de interiorização, como Bergman, Bresson ou Antonioni, a catástrofe está lançada. Mesmo porque inexiste infra-estrutura eficaz para promover a boa dublagem. Também inexiste, ao contrário da maioria de outros países onde possa imperar a dublagem, um circuito de cinemas de arte. Além disso o que é arte? O que George Sidney, por exemplo, costuma fazer (Scaramouche, Love in Las Vegas, Jeanne Eagles) é " arte" para uns; para outros críticos e para o público em geral pode ser sinônimo de mera recreação. Mas como o cinema, na verdade, não é uma arte, tal como se concebem as outras, envolve uma criação industrial, cuja ontologia - esta sim - oferece o mesmo caráter de gratuidade essencial, típica daquilo que se convenciona denominar arte, entra com pêso e perspectiva econômica. Um filme é um investimento, é só indústria e criação na etapa construtiva, depois, espetáculo, exibição, mercado e comércio interno nos países onde haja a livre iniciativa. Daí, a lei da oferta e da procura como consequente estímulo à eficácia do produto, além da participação estatal como agente promotor do desenvolvimento do setor industrial no País. Caberia, de pronto, uma indagação inicial: a dublagem, no regime de concorrência interna de mercado exibidor, ajuda as produções nacionais? Parece lógico que não, pois, não só o público analfabeto, mas mesmo aquele desprovido de qualquer conhecimento de outras línguas, viria a acorrer com maior intensidade às exibições de fitas estrangeiras. Em paralelo, o argumento de criação de mercado de trabalho maior não pode pegar, desde que se leve em conta a permanencia em potencial de uma capacidade de investir, que, conforme as perspectivas, se pode orientar para um ou outro setor de produção. O importante, sim, e isto é política de Governo, corresponde a canalizar racionalmente os investimentos a fim de que a lei da eficácia atenda às necessidades gerais. Ora, num país em processo de desenvolvimento existem coisas mais importantes para estimular os investimentos do que dublagens de filmes, fábricas de uísque ou de perucas.
Já, sob o aspecto de público, é que se pode tentar prever os efeitos das leis da eficácia e da oferta e da procura. Por isso é que, não só com relação à ameaça da dublagem, julgamos ser boa parte dos estímulos oficiais diretos dotados de um formalismo simplório que prejudica o próprio progresso setorial. Num país, onde, mal ou bem, a produção e a exibição (a indústria e o comércio) de filmes estão entregues à iniciativa privada, existem evidentemente interêsses econômicos-financeiros de produtores, distribuidores e exibidores, à margem do interêsse do público que é sempre lúdico. Mas é o interêsse do público que, em última instância, determinará, em refluxo natural, as condições de operação dos outros dois (ou três). Ora, para equacionar essa situação de nada vale o dogmatismo do hedonismo nacionalista, do pathos patriótico. Impossível colocar uma coleira no público para obrigá-lo a assistir a certos filmes que certos produtores querem que êle veja. O público é quem mantém Os Paqueras, semanas e semanas em cartaz, independente de ser ou não uma fita brasileira. Mas com as vantagens de uma fita brasileira acessível à massa.
O problema permite inúmeras outras considerações. Porém, antes de tudo, exige objetividade e bom senso. De nada vale implantar ou ampliar a fórceps uma indústria sem existir condições de consumo para os seus produtos. A dublagem, além de ser nefasta para o cinema em si, pode também ser para o próprio cinem brasileiro. Pois, dublagem por dublagem, podem todos ficar em casa, vendo TV de graça.
Correio da Manhã
18/06/1969