Orson Welles é o maior realizador do cinema sonoro. Depois de “Cidadão Kane” não há nada de novo em método de estrutura na sétima arte. “Cidadão Kane”, talvez o maior fita em tôda a história do cinema, está aí, viva, a desafiar o tempo após um período de quase vinte anos. Nem o próprio Welles, aparentemente, foi capaz de superá-la, mais provavelmente por falta de recursos condições materiais necessárias do que falta de capacidode. Mesmo assim, malgrado as dificuIdades, cada película sua, surgida posteriormente, é uma revelacão, e todas assinalam o panoramo de uma inventiva constante, cujo impulso ainda não feneceu.
Morto Eisenstein, Chaplin pouco a pouco desatualizado - as outras duas grandes figuras de proa - Ford sem o mesmo vigor, desigual («Depois do Vendaval» e «Rastros de Ódio» - «A Paixão de uma Vida» e «Asas de Águia”), Huston em fase de concessões («O Céu é Testemunha” e «O Bárbaro e o Geisha”), que temos? Bergman, Ophüls (também recém-falecido), Kurosawa, Viscomti, Jjoberg, Clair, Kubrick, Aldrich, Hitchcock, Kazan, Clément – todos mestres, alguns também inventores, mas nenhum com o constância do criador de Arkadin, nenhum que tenha articulado um novo processo de que até agora conhecemos, como o ritmo fundamentalmente diverso do caso do revolucionário “Cidadão Kane”, manancial de inspiração, até o momento inesgotável, para muitos diretores que se iniciam. Existe a elogiável segurança de um David Lean, que entre tanto nada fêz que se consubstanciasse num pequeno salto qualitativo dentro de um ângulo de visão adstrito à evolução de formas. Existe o retôrno às fontes do anedótico lírico (muitas vêzes vasado em subdiluições de Chaplin), com a periferia subcolor de soluções místicas, por parte de um artista com certa dose de eficaz intuição para com o trato da imagem como Fellini. Houve a fase áurea da duplo De Sica-Zavattini e Tati há pouco deu-nos uma obra-prima, na comédia, “Les Vacances de M. Hulot”.
Welles, por outro lado, um grande barroco, tem a façanha de ir ao monumental, através de exemplar economia de tempo e senso de função, com um filme qual «Grilhões do Passado”, que talvez mal possua hora e meia de projeção - roteiro engenhoso para uma história que, nas mãos de um Stevens ou de um Sam Wood, duraria cêrca de quatro a cinco horas. E, em “A Marca da Maldade”, novamente essa noção de síntese para com os processos descritivos da narração torna-se um paradígma. Tôda a notória complexidade de elementos utilizados nessa realização conduz a uma economia e objetividade máximas na presentificação do entrecho.
RETORNA A ZAGA DO PODER
«A Marca da Maldade” (Touch of Evil), a última fita de Welles, uma obra-prima, estabelece mais uma variante do estudo do homem em contato com o poder. Kane, Macbeth, Arkadin e Ouinlan são todos produtos de um mesmo feixe de pesquisas do indivíduo em situoção. Representam o mito do homem superior, o contrôle do domínio a alimentar um auto-endeusamento, a crise do caréter mediante a opção pelo fôrça.
Essa derradeira película obedece a um critério de fabulação, a partir da conjuntura do personagem-base (inspetor Quinlan), esquematizado de maneira algo diferentes dos anteriores. Embora um espetáculo de categoria invulgar, sofre, face a «Cidadão Kane», de uma menor solidez de concepção no complexo roteiro-realização. Ao mesmo tempo, a ambiguidade de algumas cenas, aparentando uma nem sempre perfeita nitidez isomórfica, quase certamente provém de interferências estranhas ao conhecimento do di retor nos trabalhos de montagem. Este, aliás, faz referência ao fato em entrevista ao «Cahiers du Cinéma».
Outro elemento, muito usado pelo realizador em «Kane” e “Arkadin”, e agora rejeitado foi o flash-back - chave de estrutura para o processo de liberdade temporal. Aqui o ritmo formula-se em paralelo com a sucessão verídica dos acontecimentos expostos na tela dentro do tempo real. Contudo, não deixa de ocorrer a mesma fragmentação de uma linearidade em virtude de uma simultaneidade de acões, isto é, a câmera salta de um instante a outro para mostrar o que acontece com os três personagens principais: Quinlan, Vargas e a esposa deste. Enquanto ela está só e prêsa de angústia no hoteI isolado, à mercê dos planos da família Grandi, Vargas roda de parte a parte preocupado com os movimento de Quinlan que, por seu turno, trata de levar a cabo o seu ponto de mira: anular o mexicano idealista que vem interferir em seu modo de agir que garante o statuo quo de uma posição mantida pela fôrça e pela intransigência.
As virtudes de uma agilidade rítmica agigantam-se nas mãos de Welles, conferindo um clima insólito e semi-alucinante aos eventos que se desdobram. A pausa-contraponto é a visito do inspetor à casa da cigana (Marlene Dietrich), onde um repassamento de nostalgia calca as volumosas feições dêle - afinal era também um tipo humano, «pois fôra capaz de amar», como o entende o próprio diretor.
Algumas sequências inegavelmente ontológicas reafirmam a vitalidade do talento de Orson Welles: a) o assassinato de Grandi (Akim Tamiroff), quando o movimento interior da cena forja um ritmo de enquadramentos os mais ousadamente inventivos, o quarto ora numa perspectiva enviezado, ora vertical, compondo, em adequada conjunção com os pesados corpos que se deslocam e jôgo de iluminação de luz e sombra, claro-escuro, quase uma pequena e grotesca pantomima, terminando com o grito de Janet Leigh ao despertar do torpor, vendo a cabeça de Grandi, sem vida com expressão tétrica, sôbre a sua. b) o trecho inicial, com a chegada de Los Robles à fronteira dos Estados Unidos do casal Vergas num carro, enquanto, em outro, saem o milionário Linnekar e uma corista, que diz: estar ouvindo um tic-tac. Pouco depois, uma violenta explosão incendeia e reduz o automóvel e os corpos a frangalhos. A câmera está sempre em vai-e-vem de travellings e panoramas, através de diversos tomadas e, nisso prossegue, com as respectivas chegadas do prefeito, do promotor e do inspetor Quinlan. Já é o compasso de uma tensão ambiente de violência e agitação ajustado pelo diretor. C) a passagem final, com a morte do protogonista e a voz de Marlene Dietrih ouvida no escuro antes do título Fim, inventiva solucão chave de ouro para o desfêcho de uma autêntica tragédia.
Uma das sequências mais discutíveis do filme, aquela em que Vargas, com um gravador, segue, oculto, os passos de Quinlan e Menzies (este com o microfone no bôlso) a fim de conseguir provas contra os métodos ilegais do policial, por meio de um autoconfissão, tem um desenvolvimento ajustado a uma concepção simbólica da atitude do mexicano, segundo a interpretação do próprio Welles, em entrevista ao «Cahiers du Cinéma» ( n. 87): «Esta necessidade não lhe convém e êle a detesta, como o disse a Menzies: nesse momento, Vargas perde sua integridade. É então projetado num mundo ao qual moralmente não pertence: torna-se um tipo vulgar que escuta por detrás das portas e não o saberia ser. Daí, experimentei fazer de maneira que o aporelho pareço guiá-lo, que ele seja a vítima dêsse instrumento mais do que de sua curiosidade. Ele não sabe utiliza bem o seu registrador, pode apenas segui-lo e obedecer-lhe, porque tal engenho não lhe pertence: não é um espião, nem mesmo um tira». Parece-nos que o estímulo à percepção descarregado por tal cena não conduz com facilidade à compreensão do fato, como o foi narrado pelo diretor. O processo permanece demasiadamente metafórico, sem bases racionalmente inteligíveis para atingir as intenções proclamadas, embora a sequência, bem construída não fique deslocada frente ao todo, e as vicissitudes de Vargas sejam normalmente entendidas sob o aspecto do acidental.
Já a inclusão de um tipo estranho, como vigia do hotel solitário (Denni Weaver), e que Welles diz ser influência do teatro elizabethano, justifica-se plenamente como refôrço a um colorido de clima, da mesma forma que a perseguição e o retrato que um dos sobrinhos de Grandi envia a Susan. Se taís personagens ou eventos não movem o enrêdo, fornecem todavia contribuição polpável à criação qualificação da contextura de uma ambiência. O grau de funcionalidade de um determinado recurso é antes sentido e após, sim, devidamente medido e estipulado a sua validade pelo intelecto a partir dos dados da percepção. É a sensibilidade aguda para com o uso dos pequenos detalhes que propicia subsídio importante na pintura de uma atmosfera, no delinear das várias especies de comportamento: a cabeleira postiça de Akim Tamiroff, os doces de Quinlan, o traje a rigor do promotor e o alto-falante no quarto de Janet Leigh.
No terreno do interpletação, Orson Welles reedita as suas grandes criações. Corpanzio e máscara facial frisante o comporem uma figura impressiva, um personagem que apresenta inclusive algumas características dostoievskianas. Na cena da visita Marlene Dietrich, insuperável na transmissão de todo o se drama, em breves gestos de palavras.
Janet Leigh nunca estêve tão bem como sob a orientação de Welles e o mesmo poderia dizer-se de Chalrton Heslon, embora algo apático em alguns trechos. Marlene Dietrich, em curto papel, contribui com a sua inestimáveI experiência e categoria. Akim Tamiroff, excelente no tipo bizarro de Grandi - reincidência e barroco no universo de Orson Welles. Joseph Calleia, firme e autêntico no role de Menzies e o novato Dennis Weaver constitui uma revelação valiosa como o vigia.
Sempre que um grande realizador interfere decisivamente na consecução da totalidade de uma película, a incidência sôbre o trabalho do fotógrofo é flagrante e especialmente quando êste não se alinha entre as figuras de proa no ofício, torna-se patente uma tal constatação. É o caso de Russel Metty, oferecendo um tratamento visual de qualidade incomum, tanto no enquadramento, quanto nos jogos com os efeitos de iluminação. Em “Touch of Evil”, a pujança dos imagens proporciona de imediato uma feliz transfiguração periférica do coráter patético de uma situação. Entrosamento perfeito entre o ritmo visual e o da sucessão de sequências, em arrojada é rica pontuação de cortes, travelIings e fusões. Alguns excessos de supra-ambiguidade em grau destoante somente prejudicam a solução de uma cena isolada, não ferindo a organicidade do conjunto de modo incisivo.
O acompanhamento musical, criativo e bem adaptado, ficou a carga de Henry Mancini e a fita é baseada na novela “Badge of Evil”, de Whit Masterson.
Jornal das Letras
01/02/1959