Veterano, portador de uma extensa filmografia, onde sempre o nível qualitativo manteve-se em grau bem elevado, Alfred Hitchcock ainda é, hoje em dia, um dos maiores inventores do cinema. Também mestre dos mestres num gênero, assim como o "western", caracteristicamente cinematográfico: a película de "suspense", o "thriller", um tipo de construção narrativa que prescreve solicitações de efeitos à base de soluções nitidamente visuais.
Nesse gênero, muitos diretores de indiscutível mérito se exercitaram e legaram contribuições de pêso: Robert Siodmak, Fritz Lang, Carol Reed, a dupla Launder & Gilliat e até mesmo Orson Welles. Contudo, em tal campo, nenhum revelou domínio com uma certa assiduidade capaz de empanar a homogeneidade do Hitch's "touch". Dono de um estilo fluente, uma linguagem que, via de regra, escorre naturalmente, versátil no manejo dos múltiplos recursos da câmera, sagaz intuição visual a fim de colocar logo em evidência o principal ponto de interêsse numa cena, quase insuperável no tratamento do "detalhe" e, dotado de um humor muito pessoal, que dá um colorido peculiar a diversas situações, êle compõe, juntamente com Chaplin, a dupla de diretores de real envergadura que mais consegue atrair bilheteria. Tornou-se popular; e talvez porque, embora Hitchcock seja arte, os seus processos formativos estejam muito afins com os do "divertissement".
Por outro lado, convém ressaltar todavia,- que a invenção em Hitchcock nunca vem concebida em têrmos de estrutura, como ocorre no caso de um Orson Welles, um Ingmar Bergman, o recém-falecido Max Ophüls ou o mais novato Stanley Kubrick. Nêle, as soluções para um problema integral de ritmo brotam mais à fôrça da intuição do que através de uma racionalização no uso do material disponível ou selecionado para ser transfamado em elementos de composição devidamente entrosados de acôrdo com um dado esquema. Aliás, sempre que tentou conscientemente levar a cabo um novo experimento, a abranger o sentido global da fita não foi bem sucedido. "Festim Diabólico" (Rope) constitui o exemplo mais ambicioso: procurar um novo ritmo, apoiado na ação constante - a película sem cortes. Um fracasso digno, entretanto, para um grande cineasta. "A Janela Indiscreta" (Rear Window) foi outra experiência, a partir de um problema de uma quase total integração do espectador com o protagonista quando a tela era praticamente a própria janela. A ação passava a ser adjetiva a um parti pris estático, de caráter orgânico na formulação de um espaço-tempo para o filme. Aqui, o problema não foi levado às últimas consequências, pois havia várias pausas, a câmera abandonava a sua função específica a fim de tomar o ângulo de visão de algumas visitas que iam ao apartamento onde James Stewart estava postado com a luneta. A experiência deveria ter sido mais radical, com o evidente maior ou menor risco para o perde-ganha. Assim como ficou, "Rear Window" é um celulóide de interêsse graças a algumas soluções de tratamento puramente plástico.
Mas, no que tange aos achados isolados, a inventiva é constante e ninguém esquece passagens como a do revólver e a do copo de leite em "Quando Fala o Coração" (Spellbound) ou a do assassínio da jovem visto através das lentes dos seus óculos, caídos no solo em "Pacto Sinistro" (Strangers in a Train).
HITCH NA MAIS ALTA VOLTAGEM
"Um Corpo que Cai" (Vertigo) corresponde ao melhor Hitchcock - uma obra-prima. Consideramos mesmo superior aos seus maiores filmes, entre os que conhecemos: "Quando Fala o Coração", "Um Barco e Nove Destinos" (Lifeboat), "Pacto Sinistro", "Disque M para Matar" (Dial M for Murder) a "Mulher Oculta" (The Lady Vanishes).
A realização cinematográfica do entrecho, adaptado de um romance da dupla Boileau e Narcejac, não se esgota no ciclo do thriller de mistério. Ganha uma amplitude trágica que, no entanto, jamais se define em termos literários que embotam as virtualidades do contexto essencial da sétima arte: imagem por movimento. É a visualização do protagonista em situação, mediante recursos autênticamente cinematográficos, que propicia o desenvolvimento de um clima, a formulação de uma atmosfera para o trágico.
O espetáculo mantém, desde o início, um ritmo extremamente vivaz e, na periferia, efeitos plásticos funcionalmente insólitos, quando não inusitados, por meio do uso da côr. Aliás, o início já é, em si, arte pura, é um ôlho, a espiral, um desdobrar de formas admiravelmente compassado. É também Saul Bass na máxima potência, o que já constitui por si um pequeno grande filme autêntico, despido das libações anedóticas Saul Bass é, ultimamente, a melhor coisa que apareceu pelo cinema.
A história está constantemente acompanhando os dois protagonistas: James Stewart e Kim Nova. Ele, um detetive que sofre vertigem das alturas, encarregado de vigiar o procedimento estranho dela. Esta é uma Kim Novak atriz como nunca ainda o fôra. Vivendo um duplo personagem, transforma-se completamente nas mãos de Hitchcock e tem um bom e inesperado rendimento. E Stewart, que já trabalhara antes sob a orientação do mestre do suspense ("Festim Diabólico", “A Janela Indiscreta", a segunda versão de "O Homem que Sabia Demais"), corresponde in totum às solicitações de um role até certo ponto difícil.
"Vertigo" apresenta naturalmente algumas passagens antológicas - o inventor que está permanentemente atuando sôbre o cineasta. Entre elas, a mais, fascinante e extraordinária, um show de virtuosismo e, em paralelo, adequada a um breve climax da ambiência de sonho da película, é a do beijo no apartamento de Judy, visualizada mediante um traveling circular. O arremate final do celulóide se consuma de maneira espetacular. Um impacto sêco, após uma eficaz sucessão de takes. E temos também uma admirável sequência onirica.
A música de Bernard Herrmann - integrante da equipe de Hitchcock desde "The Trouble with Harry" – apresenta qualidades criativas e insere- se precisamente ao conjunto.
O camera-man Robert Burks, também habitual colaborador do veterano cineasta, ainda há mais tempo, desde 1951, com "Strangers ln a Train", obtém um resultado para fitas em cor, como ainda nunca chegara a conseguir com Hitchcock ou em tôda a sua carreira extraordinária a fotografia em "Vertigo", especialmente no que se reporta ao jôgo de tonalidades. com o verde, particularmente funcionando de modo simbólico, como o diretor já reconhecera em entrevista ao ''Cahiers du Cinéma".
Tribuna da Imprensa
23/04/1959