O Circo vai voltar. Enfim, mais uma reprise de longa-metragem da obra de Chaplin, o que é sempre um acontecimento histórico, estético e cultural. Ou riso e emoção. A emoção do seu lirismo e a emoção de sentir o filme como máquina do tempo.
Talvez o saber olhar para a tela sem preconceitos assegure esse ponto de vista de que ele ainda é o maior cineasta da história do cinema, pelo que foi sua obra, até o pré-declínio de Limelight (Luzes da Ribalta). Alguns títulos são definitivos: City Lights (Luzes da Cidade), Modern Times (Tempos Modernos) e Monsieur Verdoux. Outros, como The Gold Rush (Em Busca do Ouro), The Circus (O Circo), The Great Dictator (O Grande Ditador) ou The Kid (O Garoto) podem não apresentar a contextura definitiva dos três primeiros citados, mas encerram várias passagens antológicas. E, sem falar nas fitas de curta ou média metragem, destacando-se relizações como Easy Street (A Rua da Paz), Shoulder, Arms (Ombro, Armas), The Emmigrant (O Emigrante), The Pilgrim (O Peregrino), A Dog’s Life (Uma Vida de Cachorro) ou One P.M. (A Uma da Madrugada). Em suma, figura do século, o homem que encarnou o vagabundo lírico, que mereceu a admiração e o cumprimento inequívoco de pessoas, como Einstein e Churchil, Gandhi e Eisenstein. Também um dos artistas definitivamente consagrados neste século, ao lado de Picasso, Stravinsky ou James Joyce.
O que difere Chaplin de seus contemporâneos cineastas é que, ao contrário do ocorrido com a maior parte da obra do próprio Eisenstein, ou de um Murnau, um Lang, um Pudovkin, um Griffith ou um Epstein, a sua filmografia poucas vezes assume um caráter museológico, apenas objeto de exame histórico-cultural ou corte diacrônico no processo. Apesar dos recursos antiquados, da maior pobreza técnica, das cenas do passado, as fitas conservam intacto o poderio catártico de capacidade de serem absorvidas como se tivessem sido realizadas na atualidade. O desfechar do riso ainda mantém-se irresistível para todas as idades. A expressão lírica, embora possa ser tachada de ingênua, simplista e até primitiva, continua pronta para provocar lágrimas e acionar os lenços. Jamais nos esquecemos do primeiro dia de reprise de Luzes da Cidade, em 1951, no cine Vitória, com a sessão se encerrando sob palmas, prantos e discursos, após o close-up final, imortal, de Carlitos mordiscando a rosa. Ou, em 1956, na première matinal do São Luís, da reapresentação de Tempos Modernos, o desvario do riso tomou a plateia, logo nos primeiros dez minutos. A emoção chapliniana encontrou breves paralelos, ao longo da história do cinema: entre eles, podem ser lembrados Sunrise, de Murnau, Sous les Toits de Paris, de René Clair, Seventh Heaven, de Frank Borzage, Maytime, de Tobert Z. Leonard, The Great Waltz, de Julien Duvivier, Umberto D, de Vittorio De Sica, ou Jules et Jim, de François Triuffaut.
Lamentável é o excesso de zelo de Chaplin – que é o proprietário de suas produções de longa-metragem- em relançar a sua obra. Gerações inteiras permanecem sem acesso a grande parte das coisas mais importantes que criou. Basta verificar – Luzes da Cidade (reprisada pela última vez em 1951) só pode ser apreciada por quem tenha mais de 35 anos; Tempos Modernos (reprisada pela última vez em 1956) por quem tenha mais de 30 anos; Monsieur Verdoux (estreada em 1948 e nunca mais relançada) por quem esteja perto dos 40 anos; Em Busca do Ouro (reprisada em 1959) para quem tenha mais de 25 anos; enfim, O Circo, que agora voltou (e data exatamente de 7 de janeiro de 1928) só encontra quem possa opinar a seu respeito na faixa dos 60 anos. Desde o ano passado já foi relançado na Europa com grande êxito.
O Circo era uma fita inteiramente silenciosa, mas, agora, com vistas à reprise internacional, foi musicado por Chaplin, mediante aquela sua tradicional singeleza de linha melódica. Ele já era escritor, produtor e diretor do filme, cujo fotógrafo, Roland Totheroth, era um de seus colaboradores habituais. Trata-se de uma realização altamente custosa para a época. Veja-se alguns dados: os animais foram conservados no estúdio por mais de um ano, incluindo leões, tigres, elefantes, cavalos, mulas, macacos, porcos, gatos, cachorros, patos, gansos e pombos. A ração para eles valeu a quantia de 60 mil libras, sendo que consumiram 14 mil galões de água. Durante as filmagens das cenas sob o toldo do circo ou nos seus arredores, figuravam nada menos do que 2 mil pessoas, que consumiram, entre outras coisas, 3 mil galões de limonada, 3 mil e 620 garrafas de soda, 2 mil e 600 sacos de amendoim, 1.120 caixas de pipoca, 5.700 salsichas, 1.500 pedaços de goma de mascar e 1.280 pirolitos.
Sem atingir às culminâncias do pathos lírico de Luzes da Cidade ou, mesmo, Tempos Modernos, O Circo narra o desencontro sentimental do vagabundo com a amazona, filha do dono do espetáculo, e oferece algumas cenas antológicas, quase à altura daquelas, como a dança dos pãezinhos, em Em Busca do Ouro, a da luta de boxe ou a do prolongamento do macarrão com as serpentinas, em Luzes da Cidade, ou as cenas da fábrica e a luta pelo franco, como jogo de rugby, em Tempos Modernos. Logo no início de The Circus, uma notável correria, em pas de quatre, entre Carlitos, o ladrão, a vítima e o polícia, admirável na contradança posicional e que termina numa galeria de espelhos, onde o non sense, de vez, assume o comando. A sequência dos ensaios, também notável, no que encerra de ambivalência de efeitos paradoxais entre realidade e ficção: dentro da tela, Carlitos, desajeitado, mantém-se totalmente inibido, enquanto atua e, assim, ninguém da troupe acha graça nele. Para a plateia dos cinemas, no entanto, a sequência é ininterruptamente cómica – todo mundo ri. Em suma, o morceau de bravure, perto do desfecho, quando, obrigado a substituir o equilibrista, dadas as contingências desastradas, acaba, por absurdo, fazendo ainda mais do que o titular da função, em matéria de virtuosismo corporal, inclusive um autêntico strip-tease em cima da corda bamba, até ficar em trajes menores.
O Circo demonstra de novo o que é Chaplin: um congraçamento de público: velhos e jovens, intelectuais e o espectador despretensioso. Bateu recordes de bilheteria em Paris, ficando meses em cartaz. Nos Estados Unidos, a mesma coisa. O crítico do New York Times disse que Chaplin dava, com essa fita, um presente que não tem preço. E William Wolf, no Cue Magazine assim se manifestou: “o filme tem um humor tão recente como o amanhã”.
É o maior mito do cinema. Que venham também, de novo, pelo menos, outras obras suas, como Luzes da Cidade, Verdoux, Tempos Modernos e Em Busca do Ouro.
Correio da Manhã
21/05/1970