Quando, no início do decêncio passado...
Quando, no início do decêncio passado, William Shirer lançou The Rise and Fall of the Third Reich (Ascensão e Queda do Terceiro Reich), este livro logo se transformou em best-seller. Nada mais natural: chegava a época em que tartar o nazismo em meros termos emocionais, modelo mocinho X bandido, em nada contribuía para situar o problema. Hitler – concretização de um dos mais poderosos mitos politicos do século – não era, evidentemente, uma expansão espontânea, assim como alguém já disse (e muitos vivem repetindo) que inexistem gerações espontâneas. O que é mito? A iconização de uma espécie de verdade coletiva; ou a necessidade de ação da fé, já que Deus parece que não chega nunca na hora da angústia. Ninguém melhor do que Ernst Cassirer, em O Mito do Estado, analisou o fenômeno da formação dos mitos politicos, a partir do mundo grego e, nos tempos modernos, passando pela teoria do heói, de Carlyle, a teoria das raças, de Gonineau, e a abertura filosófica para tudo, que seria o pensamento de Hegel, com a asa “direita” e “esquerda”, de sua visão política. Casirer, neste ultimo livro seu, acima mencionado, fugia da frieza do seu racionalismo não ortodoxo, e escrevia sob impacto aterrorizante do nazismo, do qual escapara via EUA. Restava a definição de Max Müller a quem, anteriormente, em obras, como Linguagem e Mito, ele tanto criticara: “o mito é uma doença da linguagem”. A resposta estava ali mesmo, na Alemanha de Goethe, Einstein, ou mesmo um Nietzsche, que nada tinha a ver com aquilo, a não ser a pregação reiterante do anticristianismo, do retorno às fontes dionisíacas que acarretariam a saúde humana. A resposta, sob o signo da cruz gamada, que trazia delírio emocional, rigor espartano, guerra, morticínio, genocídio.
O documentário que, agora, foi realizado e distribuído pela Metro traduz mais um exemplo do cinema como máquina do tempo. Os registros do filme e da fotografia nos apresentam, via imagem e/ou som, o máximo sobre a carreira de Hitler, destinado a sessões pares, desde a tomada de seu local de nascimento até o desfecho da aventura, com a invasão de Berlim pelos soviéticos. Muita coisa aí já foi vista noutros documentários e, aqui, apesar da presença do próprio Shirer em pessoa, repisando algumas passagens de seu livro, o pretexto é aproveitar o interesse comercial em torno do assunto. Inexistem maiores postulações a respeito dos fatores econômico-sociais que geraram o mito. Shirer, apesar de mais jornalista do que pensador ou formulador, deixa isto claro em seu livro. Ou seja: a história de uma nação derrotada (I Grande Guerra), desmoralizada, espoliada, que, no meio dos arreglos e indecisões políticas de seus governantes, só vê saída na voz daquele fanático que lhe manda reerguer a cabeça. No filme, o teor documentário, em sua montagem, é frio, seco demais, em contraste aos comentários do narrador. Falta-lhe o suporte musical das marchas nazistas ou maior utilização das cenas de grande concentração de massas, para demonstrar o que havia de terrífico na hipnotização coletiva. Resta, pelo menos, a evidência da capacidade do cinema para, doravante, guardar fatias da história com aquela objetividade que, maior que seja a boa vontade, a subjetividade dos livros é incapaz de suprir. Isto, quanto aos trechos, captados isoladamente: a história poderia estar melhor montada.
Correio da Manhã
01/02/1970