A apresentação de Quelé do Pajeú, nessa entrada da década de 1970, evidencia o gênero típico brasileiro - o cangaço - quase duas décadas ainda sob o signo de Lima Barreto. Até aquela cena-padrão, dos bandoleiros deslizando em fila Indiana em recorte contra o horizonte, ainda ressurge, agora, diluída na tela imensa dos 70 milímetros. O Cangaceiro, de Lima Barreto, com prêmio em Cannes, com o sucesso discográfico de Muié Rendeira, na voz de Vanja Orico, foi o primeiro vagido internacional do cinema brasileiro, dentro de um hiato de silêncio apenas cortado pelo discutido artigo de Orson Welles sôbre Limite, de Mário Peixoto - fita essa que, com o tempo e o zêlo ciumento de seus cultores, já se tornou material de ocultismo.
Fechando o ciclo, Quelé do Pajeú - outro ponto positivo na carreira de Anselmo Duarte, como realizador - se consiste, como ninguém ignora, em projeto original de Lima Barreto, cujo destino, parece, inclusive, dadas as afinidades em material de rigor e cuidados de produção, será idêntico ao de Mário Peixoto. O mais curioso, entretanto, é que, durante um período de quase vinte anos, onde descobriu o cangaço como western caboclo, nosso "gênero por excelência", nada mais de expressivo foi feito, nenhuma pepita cinematográfica extraída do filão. Deus e o Diabo, de Glauber Rocha; é uma exceção alegórica e intelectual. Geralmente, as fitas no gênero sofrem de uma certa carência de recursos e de um imediatismo comercial (em face da garantia de exibição obrigatória) que prejudicam várias formulações passíveis de serem engendradas, a partir do fenômeno. São histórias de aventuras, de dramatismo simplório, e nada mais. Não se poderia exigir muito mais, diante até das possibilidades do espetáculo cinematográfico, atraindo com cavalgadas, estupros, tiros etc. Porém, seria plausível um algo mais que fizesse pensar um pouquinho, à margem da pura recreação.
Algumas outras realizações são bastante razoáveis - ninguém, todavia, no sentido realista, chegou sequer a tanger o que Nelson Pereira dos Santos fez, em Vida Sêcas, para ficarmos na área do Nordeste. Agora, Quelé do Pajeú pode refletir um reestímulo. Já existe até, entre nós, um mínimo de recursos e maturidade no trato com os elementos cinematográficos para que o nosso prefixado "gênero por excelência" fuja à indigência que o vem estigmatizando.
Cinecangaço
Desde O Cangaceiro, de Vítor Lima Barreto (produção de 1952, e premiado em Cannes), o filme de cangaço tem dado muitos títulos, embora poucos ilustres. A Morte Comanda o Cangaço, de Carlos Coimbra (1960), foi dos primeiros a incorporar a côr como elemento dramático no tratamento da paisagem, juntamente com Mandacaru Vermelho, de Nelson Pereira dos Santos, da mesma época. Outros títulos: Três Cabras de Lampião, de José Carlos Burle; Memória do Cangaço, de Paulo Gil Soares (curta-metragem), Maria Bonita Rainha do Cangaço, de Miguel Borges. Filmes ambientados no Nordeste foram muitos, sem vinculação direta com o cangaço tout court: alguns, Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha), Vidas Sêcas (Nelson Pereira dos Santos), A Compadecida (George Jonas) Entre os nordesterns mais recentes: O Cangaceiro Sanguinário e Cangaceiro sem Deus, ambos de Oswaldo de Oliveira, Corisco o Diabo Loiro, de Carlos Coimbra, O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, de Glauber Rocha. Quelé do Pajeú é o primeiro filme brasileiro em 70 mm e seria o 3º filme de Lima Barreto: (O cangaceiro, A Primeira Missa), se não fosse o 4.º de Anselmo Duarte: Absolutamente Certo, O Pagador de Promessas, Vereda da Salvação e Quelé.
Correio da Manhã
07/03/1970