O contexto de violência é uma das características na filmografia de Donald Siegel. Não a violência episódica, porventura gratuita, a colorir aquilo que se convencionou denominar "filme de ação", amiúde de nafureza comercial. Com Siergel há um fundamento estrutural, isomórfico, ontológico, para o envolvimento do espectador através das virtualidades do meio.
Coogan's Bluff (Meu Nome é Coogan), uma das fitas de maior pêso dos últimos anos, foi ponto culminante no processo do cineasta. Agora, êste insólito e fascinante O Estranho que nós Amamos (The Beguiled) se consiste na reculminação, mediante entrecho dos mais originais. No interregno entre ambos os filmes, Os Abutres Têm Fome (Two Mules for Sister Sarah) traduziu um hiato algo decepcionante, quando não conseguiu dar o ritmo e tom adequados à alegoria.
O estranho que nós Amamos: Guerra de Secessão - um cabo do Exército ianque, bastante ferido, vai parar numa antiga mansão de sulistas, em decadência, agora transformada em escola de môças, dirigida pela proprietária (Geraldine Page) que tinha relações incestuosas com o irmão desaparecido - só há mulheres, inclusive uma remanescente escrava (a única pessoa que, em tôda a trama, revela dignidade e maturidade - liberdade essencial), alvorôço com a presença masculina - decidem não entregá-lo aos soldados do Sul, que, vez por outra, passam diante do portão - inicia-se o transe, a liberação radical da violência e do erotismo nas mulheres, até o desfecho cínico e macabro.
Poucas vêzes se assistiu, no cinema, à desmistificação tão aguda e brutal de uma sociedade de hipocrisia, moralismo irreal e auto-repressão sexual. Tudo consoante um método não discursivo, sem concessões, dispensando verbalismo denunciatório, declamatório. No caso, não tem importância o leit-motiv do parâmetro vitoriano; a fábula fica de pé diante de qualquer contexto análogo. O excesso de repressão, aliás em qualquer hipótese (não apenas sexual, mas política, administrativa, escolar etc), pode gerar uma descompressão temporariamente alucinatória, prontas, no caso dessa fita, as mulheres até a competir com os personagens do Satyricon, de Fellini.
Muitos também poderiam enxergar uma certa misoginia no espírito da fita, quando o mito da fragilidade feminina é pôsto por terra da maneira mais impiedosa possível. Pois a fragilidade, como ensina o filme, pode gerar violência, é violência em potencial. Mas inexistirá contradição nisso, aquela contradição que descerraria a misoginia, se lembrarmos que sexo é e sempre será violência.
A presença do homem, naquela mansão situada como que à margem da guerra, confere, de modo inverso, a impressão de aparecimento do anjo terrível de Teorema, em âmbito de micro-estrutura. O trauma foi suficiente para mudarem as vidas, de um extremo ao outro do eixo da liberdade: a autorepressão e a selvageria. Por isso, aí está a única etiquêta discursiva da obra, na cena em que a criada diz ao cabo que nenhum dos dois possuía liberdade, pois êle, assim como muitos outros "homens livres", são obrigados a participar da guerra. Pois é, o Vietnam.
A sequencia mais brutal da fita, aquela onde Geraldine Page, auxiliada por tôdas as demais, amputa a perna de Clint, sob alegação de gangrena, parece gratuita, em sua crueza, no momento. Posteriormente, obtém a dimensão funcional, uma espécie de catárse por retrospecção, quando se comprova em definitivo a vingança sexual e o desejo de prender o homem na casa. Justifica-se o radicalismo do cineasta, na eventualidade: a "virtude" forja o horror biológico, em decorrência da alienação fisiológica.
Quem sabe os males que se escondem nos sexos humanos? Freud sabe. As invocações fálicas são repisadas, descontraidamente, por professôras e alunas. O homem, de muletas, constitui centro passivo. Reage, pelo desejo despertado pelas próprias mulheres. Na única vez, ao final, em que vai agir, não em função do sexo, mas do amor ou qualquer "algo mais" além da, carne (ficará noivo da sócia de Geraldine, Elizabeth Hartmann em ótima aparição), será liqüidado num banquete macabro. Um brinde aos cogumelos silvestres, colhidos para o ritual pré-funerario do Sade de saias. Pois, como diz W. H. Auden, num dos seus grandes cemas, Oxford, a natureza só pode amar a ela própria. Tão amoral como o verdadeiro amor.
Admirável o nível cromático da fotografia de Bruce Surtess: tonalidades mortas em correspondência ao esmaecimento do tempo, eficaz na execução plástica das fusões, sempre concebidas com bom gôsto e funcionalidade. E a letra da balada de Lalo Schffrin já propicia o sublinhamento simbólico do espetáculo: "por que aprender francês se vocês não vão à França?"
Correio da Manhã
30/06/1971