Em Paris, depois da liberação pelo autor, a retrospectiva dos filmes de Chaplin, iniciada com o clássico Tempos Modernos (Modern Times), que, de acôrdo com as notícias, vem ensejando filas nas portas das salas de espetáculo. Nada mais justo: Chaplin (ou Carlitos) é o espírito do cinema - a essência de lirismo e movimento.
Gerações inteiras ficaram sem oportunidade de conhecer as suas maiores obras. O citado Tempos Modernos, cuja última reprise se deu por volta de 1956; seu maior filme, Luzes da Cidade (City Lights), com o último relançamento em cêrca de 1951; Monsieur Verdoux, estreado em 1948 e nunca mais reprisado; enfim, Em Busca do Ouro (The Gold Rush), com última reprise mais ou menos no término da década de 1950.
Com passagens até hoje admiráveis, onde não existe apenas o interêsse cultural-museologico-histórico, mas permanecem os efeitos catárticos de crítica, melancolia e, principalmente, hilariedade, Tempos Modernos possui a atualidade de quem percebeu o delírio da sociedade industrial, não elidindo os problemas de imensa desigualdade social e com a apropriação irracional da máquina em evolução. Hoje em dia, isto está ai patente, com neuroses, bombas, carros estacionados nas calçadas - em suma, a fotografia do caos de uma civilização bastante poluída moral e fisicamente. Uma civilização que gera alternativas radicais para maioria da população mais jovem, incorformada, alienada, entre o escapismo e a revolta violenta.
O tom profético de Chaplin sempre pareceu o de um individualista atarantado com a máquina e a perspectiva de uma tragédia coletiva através dela. Aceitar, com tanto irracionalismo, o desenvolvimento tecnológico era difícil, embora inevitável. Conduz à alienação dos meios materiais, também para o artista. A grande coerência de Chaplin foi, assim, a de não marcar passo com uma tecnologia de efeitos do cinema e de não sair de esquemas anedóticos, desprezando a descoberta de novos métodos de narração ou exposição e, no entanto, ter conseguido uma obra de fôrça indiscutível. Mormente no aspecto humanístico.
Evidentemente, a sua alienação quase intencional conduziria-o, no final da carreira (Um Rei em Nova York e A Condêssa de Hong Kong), ao fracasso, à marginalização do processo, apesar das palmas e encômios renitentes de uma minoria de críticos inconsoláveis. Porém isto não chega a destruir ou empanar a obra daquele que é maior mito da história do cinema, motivo de poemas de alguns dos maiores escritores, entre êles, o Canto ao Homem do Povo, de Carlos Drummond de Andrade.
Agora, a promessa de retôrno da grande fase, em pêso; parece que não ficará apenas reservado aos minicassetes, cujo destino, por enquanto, seria somente o dos bolsos ricos para adquiri-los - uma contradição de cineasta extremamente popular. Pois Chaplin - e, principalmente, o personagem de Carlitos - se dirige a um público que, se já vai ao cinema com extremo sacrifício, muito menos teria acesso a uma invenção recente e onerosa.
Das pequenas odisséias do vagabundo lírico e bufão, passando pela caricatura de Hitler (O Grande Ditador), até o cinismo implacável, porém justo, de Verdoux, trata-se da perspectiva de um encontro e reencontro mais do que necessários. Pois, se especialmente no cinema, a tecnologia também é implacável, quantos poucos filmes, na medida dos decênios, ficaram deveras, como documento humano, além do espetáculo em si? Aurora, de Murnaua; L' Age D'Or, de Bunuel; alguma coisa de René Clair, talvez de De Sica ou Ford.
Correio da Manhã
23/11/1971