Zabriskie Point é um promontório no Deserto de Mojave, que domina o Vale da Morte. É o Oeste bravo norte-americano ainda no Século XX. É também o título do último filme de Michelangelo Antonioni, rodado nos Estados Unidos. Novamente em côres. O seu terceiro filme com exploração cromática, desde Deserto Rosso, passando por Blow Up. Neste filme, depois de muitos estudos in loco e de sentir e procurar os tipos humanos, o maior expert no binômio tédio neurose, no cinema, volta-se para a América. E, outra vez, as contradições de nosso tempo.
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A carreira de Antonioni permite, desde já, que seja classificado, não só como um dos grandes do cinema italiano (ao lado de Fellini, Visconti, Rosselini ou que representou De Sica em passado recente), porém como um dos maiores cineastas da atualidade (perto de Kubrick, Resnais, Godard, Welles, Bergman, Tati etc.). Os seus primeiros filmes não foram os mais significativos. Realizou três curtametragens muito bem sucedidos - Netezza Urbana, L'Amorosa Mensogna e Superstizione, além de vários documentários – e iniciou-se, em 1950, aos 38 anos de idade, no seu primeiro longametragem, Cronaca di un Amore, com a fascinante Lucia Base e Massimo Girotti. Já era a tentative de dissecar o comportamento e as reações de uma classe burguesa, entregue à perplexidade existencial. No Segundo filme, I Vinti, subdividido em três episódios, tentou transportar problema análogo ao âmbito da juventude. A seguir, foi o momento de glorificação de Lucia Bose, numa fita de título já significativo - La Signora Senza Camelie: jamais exibido no Brasil. Fêz, após, o episódio, Tentato Suicídio, da realização, Love in the City, e, em seguida, voltou a perscrutar as mulheres abastadas em situação, através de Le Amiche. Até então, ele demonstrava-se um cineasta sério, com a intenção de, não apenas encontrar um estilo definitivo, mas de achar qual o tom adequado, de meio e comportamento, próprio à sua visão dos problemas e de uma classe. Veio então Il Grido (O Grito), fita notável em sua pungência, término em holocausto, dó de peito e chave de ouro de um período em sua filmografia e, em paralelo, ponte para a entrada na segunda, grande e histórica fase de uma carreira essencialmente criativa, sem concessões.
O ano de 1960 é o ano de uma obra-marco na história do cinema - L'Avventura (A Aventura) - que causou tumulto, quando exibida no Festival de Cannes. Aqui, êle iniciava o seu processo (que chegaria às últimas consequencias no Eclipse) de descascamento das capas simbólicas da realidade, a propósito de um entrecho onde focaliza o vazio e os desencontros de dois sêres casados, de camada alta da sociedade. A partir daí, passou a ser considerado, por excelência, o cineasta do casal (do couple), do par humano, em impasse existencial . Em L’Avventura, com o ritmo intencionalmente lento, mas rigorosamente funcional, Antonioni elimina ao máximo qualquer fóco simbólico que contamine o desenvolvimento dos fatos, escassos, mas precisos em sua contribuição a uma idéia geral. Uma flor é uma flor - não quer dizer nada além dela própria; o mesmo acontecendo com uma écharpe ou um brinquedo de criança. O final, de nôvo pungente como em Il Grido, mostrava, como fator de fabulação inédito praticamente no filme, o marido, chorando, logo depois que fôra surpreendido pela mulher numa incursão amorosa inconsequente, de objetivo apenas erótico.
A realização subsequente a L'Avventura, La Notte, revelou-se como variação em tôrno do mesmo tema, somente com a alteracão em se focalizar o problema do intelectual e o impasse do escritor na atualidade. Escrever sôbre o quê? - parecia a pergunta lancinante a se desprender do contexto filmico, vazado numa espécie de sufocamento ambiental, entre os muros sartrianos de uma civilização eletrônica, onde, inclusive, qualquer forma de prazer, o mais simples, remetia à idéia fixa de evasão. Dessa vez, no desfecho, vê-se o casal agarrando-se, como salvavidas mútuos na onda inclemente da incerteza. De nôvo, vida x arte: escrever sôbre o que se não se sabe qual o sentido do estar no mundo em determinadas contingências?
Em L'Elise (O Eclipse) o diretor chegou à radicalização e ao próprio impasse. Os protagonistas fazem o amor furiosamente, mas é como se nada acontecesse. O tédio é irrecorrível. Também o de Antonioni: na longa sequencia final, em lugar de uma visão catártica empregada nos dois filmes anteriores sôbre o couple, êle imerge no Nada (o néant mallarmaico) através do documentário puro, silêncio sombrio para uma civilização que parece prefigurar a morte de uma forma de humanismo. Sentia-se que iria mudar a feição de sua obra.
Primeiro, não foi propriamente uma mudança estrutural. O entrecho ainda refletia a especulação intensificada sôbre o comportamento neurótico. Assim foi o Deserto Roso, que, no entanto, traduzia a inauguração da côr em Antonioni, captada numa atmosfera francamente experimental. Atacou o cinza como matriz ambiental – jogou com os tons mortos. O resto: o mesmo impasse burguês, do casal, focalizado com a mestria de praxe.
Foi Blow-Up, novamente em côres, que estabeleceu o passo decisivo para uma modificação no espírito de especulação. Antonioni filmou tudo em Londres - impressionara-se com as primeiras manifestações da saudável revolução neo-pagã encetada pela juventude. A fotografia funcionou como instrumento de aprimoramento plástico e também como leit-motiv de perscrutação metalinguistica. O protagonista, fotógrafo profissional, já não é o mesmo das fitas anteriores - inexiste uma interio·rização sôbre seu estar. É mero agente catalizador, testemunha equipada e registradora do "doce mistério da vida", que, ao fim, lhe deixa perplexo, tomado de solidão, da consciência da falta de sentido do carnaval humano - naquele final ultrafelliniano do jôgo de tênis sem bola onde se sente a humanidade como o ator no palco do mundo, a fazer gestos absurdos. A, fotografia e os meios de reprodução facultam descobrir um crime e um cadáver - tudo sem explicação e sem conclusão - o desaparecimento do cadáver é análogo ao desaparecimento da mulher em L'Avventura. E aquêle achado do diretor, do flash-flash incessante de David Hemmings com a máquina, passou a ser adotado por muitos outros cineastas.
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Depois da Inglaterra, agora a América em cores, Zabriskie Point, como ocorre amiúde nas obras de Michelangelo Antonioni, é uma fita bastante pré-estudada. Trata-se de uma produção de Carla Ponti para a Metro Goldwyn-Mayer, sendo que, ao lado do próprio diretor, participaram da elaboração do roteiro Tanino Guerra, Fred Gardner, Sam Sherpard e Clare Peplo. A fotografia é de Alfio Contini, havendo de tudo na faixa musical, desde efeitos eletrônicos, até uma valsa, The Tennessee Waltz, cantada por Patti Page.
Antonioni lança dois novos atôres para Zabriskie Point: Mark Frechette, escolhido por acaso, e Daria Halprin, estudante dançarina e trabalhadora em cerâmica. Ainda no elenco, figura Rod Taylor, que, desde Os Pássaros, de Hitchcock, não encontrava oportunidade tão boa. Resta ver o que representará esta fita, como etapa na obra de Antonioni, uma das mais importantes do cinema moderno.
Correio da Manhã
29/05/1970