Teorema de Godard: José Balsamo indaga qual o nome dela (Mireille Darc) - ela responde - êle diz que aquêle não é o dela e, sim, do marido - ela dá o de solteira - êle diz que é o do pai, que ela não é ninguém, e arremata: "o Cristianismo é a negação da linguagem". Depois, logo a seguir, anuncia que veio ao mundo para acabar com a era gramatical, inclusive no cinema. Balsamo é o próprio cineasta falando - Week-End, talvez o seu maior filme, é também a demonstração em matéria de fábula, de sua revolução cultural, já germinada em seus filmes imediatamente anteriores, Masculin Féminin, Made in USA, Deux ou Trois Choses que Je Sais D'elle e La Chinoise. Depois de Week-End viria o hiato - One Plus One foi a reiteração desnecessária e redundante de um processo iniciado com as fitas, citadas, e Le Gai Savoir, a tentativa de inauguração de uma nova linguagem, ficou num tatibitati instigante, porém sem a amplitude da renovação estrutural desejada. Godard teria de partir para outra, a fim de não sumir do mapa. Já fica, no entanto, pelo que fêz, como um dos quatro ou cinco maiores criadores da história do cinema.
A revolução, com os elementos em jôgo no mundo moderno, se houver, implica em coisas mais largas e mais profundas do que o mero economismo e a fixação acadêmica na luta de classes. Jean-Louis Bédouin, em seu livro sôbre André Bréton, onde também, na época, examinava-se o aspecto fecundo do enlace comunismo-surrealismo, já mostrava que qualquer revolução, que dissesse respeito à humanidade em bloco, teria de importar fatalmente na liquidação do cristianismo, evidentemente superado e já em crise. E é isto que Godard viu longe, já tinha visto antes, trata-se de um problema de linguagem. E não há maior hommage à abertura surrealista, à destruicão do racionalismo conformista, do que a cena notável, onde ouvimos Lantréamont com acompanhamento de bateria - Lautréamont, surrealista avant la lettre, em seu Canto I de Maldoror, o mergulho no vieil océan.
Um mundo de violência, o delírio pelo consumo, onde também, nos contrastes, explode a poesia. O tema homérico da viagem reassume sua função de leitmotiv, nesse week-end de horror por uma humanidade que viu valôres deturpados e não sabe como encontrar outros. Na competição pelo ganha-confôrto, a burguesia vai às vias de fato, sendo o automóvel o principal leitmotiv concreto, que completa aquêle da viagem. É também o símbolo da máquina em sua dominação do criador, o homem, em cidades onde se atende, cada vez mais, ao interêsse do carro, e não do homem. Carros, assim, agredidos acidentados, roubados, incendiados. Logo no princípio, após alguns lances da vida conjugal em decomposição, Godard num dos panoramas mais longos e lentos que conhecemos, acompanha a fila de carros engarrafados pela estrada e algumas cenas de sangue e desastre. Aliás, a presença constante do sangue - outra reiteração significante.
Mais uma vez também é possível assinalar a influência do distanciamento brechtiano sôbre o cineasta. Inexiste catarse nas cenas de luta ou violência ou morte, desenrolam-se como ensaio geral ou plaisanterie, mas, por isso mesmo, já trazem em si o seu comentário antidiscursivo. A catarse pode surgir aleatoriamente, como na bela cena da morte da guerrilheira, que, quase em close, entra uma canção em sussurro. Em paralelo, cenas como se fôssem ligeiras cortinas cômicas da ribalta: o protagonista, enquant o passante estranho copula com sua mulher, pede carona a um carro, onde vem nm chofer conduzindo uma senhora - ela indaga: "Dormiria com Mao ou Johnson?" - Ele tenta ser agradável: "Johnson." – Ela: "Fascista!" - e o carro arranca.
Tomadas também da busca ao paraíso perdido, único refúgio dos que não querem competir ou revolucionar. O grande passado cultural: numa cena admirável, com alguns closes à la Renoir, a môça, com trajes da epoca, lê Lewis Carrol e não responde ao protagonista qual o caminho de Oinville - êste ateia fogo nela (''quando ouço falar em cultura, saco meu talão de cheques" - remember o produtor de Le Mépris), enquanto o acompanhante faz a exortação perante as chamas. Ou a memorável cena de Mozart, onde, enquanto o pianista toca ao ar livre, atrás do caminhão, os panoramas circulares de Godard, também lentos, realizando primeiro dois giros completos num sentido, depois, no inverso, perfazem uma analogia visual com os "movimentos" do compositor. A velha cultura, fruto da grande nostalgia intelectual, porem distante de uma realidade de ruptura. Depois de Mozart, mais violência. Violência radical, renovação inclusive antropofágica - no desfecho, a espôsa deglute o próprio marido. Fim.
Week-End, ao contrário da técnica do cine-entrevista, mais presente nas fitas anteriores e posteriores, segue a linha A Bout de Souffle - Pierrot Le Fou, apenas que num estouro mais épico, cósmico, histórico. Painel de humanidade em decomposição. Clímax da carreira de um cineasta, que saiu da microestrutura - a meditação sôbre o filme - e atingiu a macroestrutura - a meditação sôbre a linguagem e aquilo que, dentro dela, contém o germe da renovação, pela arma do irracional, do racionalismo suicida.
Correio da Manhã
22/03/1970