O diretor, Carlos Diégues, diz que prefere não definir êste seu filme, como político. Certo - o filme político (que seja válido) implica, inclusive, numa visão (não apenas exposição) dialética sôbre os acontecimentos, relacionados entre si. Já Os Herdeiros acompanha a trilha operística de Glauber Rocha, com diapasão em tom menor, a expressão poética inócua. Esta, sem dúvida, a sua principal influência: os movimentos heróicos em sequencias intimistas, os atôres que, às vêzes, berram ou se atiram no chão, dentro da intencionalidade de romper com a lógica ambiental do comportamento.
Tudo muito bonito, se não imperasse um clima permanentemente desagradável de artificialismo. Se o filme não é político, o leit-motiv é político, mas a vivência em tôrno disso é nula. Mesmo o aspecto documental, mal aproveitado. Entretanto, se o leit-motiv é político - dentro da História do Brasil, a partir da fase imediatamente anterior à revolução de 1930 até os dias de hoje - assim como no caso de O Bravo Guerreiro, não se vê ou se sugere a presença de um militar sequer pelas imediações do plot. Então, de acôrdo com a trajetória de Jorge Ramos, o protagonista, permanecemos em Lord Acton - "o poder corrompe" - e a classe política civil era o germe da corrupção.
A sinópse informa que se trata da "estória de uma família através de 30 anos". Não é bem isto o principal: constitui o filme a história, durante mais de 30 anos, de um jornalista e carreirista político, cujo comportamento e participação em certos acontecimentos assemelha-o amiúde com uma personalidade real. Vemos Sérgio Cardoso a se contorcer, na glória ou na prisão, na dureza ou no fausto. Acaba se matando, enquanto o filho, que condenava seu comportamento, herdará a fortuna e o mesmo germe da corrupção. No final, caminha já envolvido por aquêle cavalheiro do sobretudo (por que o sobretudo?) e bengala modêlo saca-rôlhas. Apesar do tom alegórico, parece que há um excesso de pessimismo e de maniqueísmo em tôrno da realidade brasileira. Seria alienação?
Exemplos recentes de fitas realmente políticas: A Guerra Acabou, de Resnais; A China Está Perto, de Bellocchio; Os Fuzis, de Rui Guerra. Os Herdeiros - nem a sua matriz parcial e também frustrada, Terra em Transe - nada tem a ver com isso. Aliás, no momento atual, parece extremamente difícil existir liberdade para se fazer um filme político no Brasil, com um mínimo de objetividade quanto aos dados - sem falar nas tendências... O resultado é a dança entre a omissão e a mauvaise conscience, esta última, doença de intelectual burguês detectada por Sartre, mas também usada e abusada como purgação. Em Os Herdeiros, não são mencionadas a crise da posse de JK, a da renúncia de Jânio e da posse de Jango e otras cositas más. Ficamos no vácuo sem saber o que Jorge Ramos estaria fazendo nessas horas ou o qual o vestido de ocasião que escolheriam para Odete Lara.
No transe operístico, Mário Lago (como o fazendeiro de café na ruína) resiste heroicamente à ingratidão do enfoque de seu papel, mas tem o prazer de ouvir em cena o seu chorinho e de Custódio Mesquita, Mentirosa, num rádio velho e na gravação original de Orlando Silva. Os maiores louros cabem ao fotógrafo Dib Lufti, valorizando bastante o aspecto plástico da realização, onde algumas cenas, como aquela da expulsão de Jorge e da mulher da fazenda, tomadas do alto, merecem registro. Ou vale citar o cromo, em que Isabel Ribeiro, também em traje branco, oscila na ponte, numa espécie de interlúdio lírico para o drama. Sérgio Cardoso esparrama-se em demasia, em função do próprio mood do espetáculo, mas não chega a se comprometer totalmente.
Os Herdeiros é uma outra demonstração de que o cinema brasileiro evolui bastante sob o aspecto técnico (o lado documental é falho e de aplicação incorreta e antifuncional). Pena que não houvesse a consequencia estética.
Correio da Manhã
24/05/1970