Easy Rider é um dos filmes majs badalados dos últimos tempos pelo que encerra de revolta, de exasperação libertária (ou liberticida?), de appeal ao espírito da juventude contra o encurralamento do establishment. Quase o anti western na motocicleta, em material de leit-motiv anedótico.
Isto pôs, é necessário pingar os ii. Não se está diante de uma obra-prima, fita de grande importância para a linguagem (a única invenção sintática que o realizador tenta, sem maior funcionalidade, é o pisca-pisca prévio - Resnais, sempre Resnais - em várias passagens de cenas) ou de enorme impacto político ou cultural. Os dois protagonistas, vívidos muito bem por Peter Fonda e Dennis Hopper, são vítimas da violência, no Old South. Mas, por exemplo, em Copacabana passariam despercebidos, em Ipanema, sentar-se-iam no Zepelin, em San Francisco ou Carnaby Street poderiam talvez já ser tomados como old timers. Então, o grito de liberdade que se entoa não pode ser dirigido contra a América em bloco, muito menos contra a civilização industrial no Ocidente. Trata-se, aqui, de uma obra de evasão, na medida em que apenas desejam "viver a sua vida", nômade, drogada e fantasiada, mas são caçados pela mentalidade fascista. A sua contestação é passiva, esgotase com a mera presença insólita para o meio. E, fim.
Nietzsche, Paulo Francis, ao comentar Teorema, achou que Pasolini deu uma de Nietzsche. Achamos que Hopper e Fonda, talvez sem querer, sem aquela intencionalidade mais intelectual de Pasolini, deram ainda mais a sua de Nietzsche. Dionisius contra Apólo - paganismo contra as misérias da "civilização cristã e ocidental”. A grande revolução está vindo mesmo por aí, trazendo, então, no seu bôjo, a luta de classes e outras coisinhas mais. Mas, enquanto o mundo dionisíaco é alegria, euphoria vital, saúde amoral, o tom de Sem Destino é o de um Dionisius depressivo. E, localizando-se geograficamente o mal - o Sul dos EUA provinciano – acreditamos que o problema não é atacado com aquela dimensão arrasadora com que outros cineastas americanos, até mesmo vinculados ao establisliment - Kubrick, Mankiewicz, Wilder, Kazan, Wise etc - já fizeram com o mundo ianque. A repressão contra Mr. América e Billy só é lógica em meios subdesenvolvidos ou no universo da Cortina de Ferro ou em regimes de direita. Não se precisa sair daqui para saber disso.
O ritmo da fita, às vêzes lento, flui. A fotografia em côres de Lazlo Kovacs, às vêzes, dá ótimos dós de peito, especialmente na sequencia lisérgica do cemitério, com os protagonistas em transe junto às duas meretrizes, com o embaralhamento acronológico dos planos e a mixagem inteligente das vozes psicidélicas com a das orações feitas por um grupo perto do túmulo. Aí, o simbolismo da queda do mundo cristão – embora o agente principal na verdade, não seja a droga, mas, sim, a máquina. No plano final, o simbolismo placidamente telúrico da imagem do Mississipi, o Velho que, como o tempo, ou a tese de Heráclito, a tudo engole.
Outra, a1egoria simbólica. Aquela espécie de comunidade hippie, onde ficam algum tempo, apresenta conotações com uma espécie de comunidade bíblica, cristã, com a plena liberdade. Projeto da sociedade ideal? Ou de uma espécie de verdadeiro comunismo, sociedade sem classes, sem propriedade sexual, a família glomal, humana.
Mas Mr. América e Billy saem dali, depois de haverem brincado, nus, com as mulheres dentro d'água, são presos por pertubarem com a sua presença um desfile marcial e, na cela, encontram o companheiro, George Hanson, bêbado permanente, que os acompanha na odisséia e será morto a pauladas. É também a aparição de Jack Nicholson, em notável interpretação: ganhou o prêmio de melbor ator coadjuvante pela Associação de Críticos de Nova York.
Assim, como Easy Rider, obteve, o ano passado, em Cannes, o prêmio de melhor filme de diretor estreante. Merecido, para a categoria. É de fato uma fita de estreante, que se comunica bastante com o público jovem, especialmente através de sua faixa musical. Poética, algo escapista irreal como germe de tese a ser desenvolvida em bloco. A verdadeira revolução cultural, que é também a grande revolução da linguagem, dentro do cinema, estêve bem perto de nós, há pouco: Week-End, de Godard. Fonda e Hopper ainda estão esquentando os motores.
Correio da Manhã
05/04/1970