No momento em que Easy Rider entra em cartaz, aqui, com grande sucesso, e aciona o mexe-mexe intelectual, Midnight Cowboy já há mais de 16 semanas também em cartaz, no Rio, recebe o Oscar (desta vez, a Academia de Arte e Ciências Cinematográficas preferiu galardoar as realizações de conteúdo polêmico, não-conformistas). Ora, é interessante descerrar algumas analogias entre as obras dos cineastas Dennis Hopper (Easy Rider) e John Schlesinger (Midnight Cowboy).
No desfecho do clássico de John Huston, The Asphalt Jungle (e, note-se, o título do romance original, conservado pela fita, já era simbolicamerite denunciador: a selva de asfalto), Sterling Hayden, ferido de morte, consegue voltar ao campo e saudar o cavalo. O início de Perdidos na Noite (Midnight Cowboy) representa a contrapartida: Joe Buck enfia as botas, o chapelão e a camisa de cowboy e, confiante no machismo, sai do campo de ônibus, para Nova York, onde julga que o mero fisíco lhe dará a fortuna e glória de gigolô. Não sabe que vai escorregar no asfalto selvagem - quer ganhar a vida, quer competir, segundo as metas que o establishment acena para o cidadão. Lá encontrará Ratso, descendente de imigrantes italianos; viciados no basfond nova-iorquino, vigarista; tuberculoso, manco, que, apesar da decadência moral e material ainda sonha com Miami, onde tudo lhe parece terra da promissão. O fracasso de Joe, leva-o a aliar-se a Ratso, na operação saída do lôdo e chegada à Flórida. Joe não encontra geralmente as mulheres ricas destinadas ao seu corpo e habilidades na cama: encontra vigaristas, homossexuais e espertalhões. Sente a miserabilidade do ventre da grande capital e percebe que a sua fantasia, não é propriamente a do cowboy triunfal, mas do palhaço. Mas a miserabilidade e a fôrça para sair do estêrco, vala comum social, une fraternalmente dois tipos tão heterogêneos: lutarão até o fim, até quando, no ônibus, a caminho e na chegada da terra dos sonhos de Ratso, êste morre ao lado do companheiro, à beira de atingir o seu objetivo desejado. Joe, simbolicamente, livra-se das roupas de cowboy, no final - sabe que, para competir terá que, como a maioria; trabalhar ingloriamente, voltar a lavar pratos, como prosaicamente fazia na terra natal.
Em Easy Rider, logo de saída, os protagonistas, Mr. América e Billy, em lugar do sonho com a civilização, expressam a rejeição da civilização, pelo menos esta civilização cristã e ocidental. Dois homens numa atitude cortrária, de evasão, e, não, de competição. Querem a liberdade total; "viver sua vida", num refluxo dionisíaco, onde impera o nomadismo e o impulso da droga. Não sonham com a realidade distante e material: sonham concretamente, com a maconha ou outros tóxicos sempre ao alcance da mão - o sonho imaterial, especulativo. Mas estamos no Old South - em todos os locais onde estacionam as motos (que substituem os cavalos dos cowboys heróis) encontram também a rejeição da intolerância no establishment provinciano. Uma troca de sinais curiosa entre os dois filmes: se Joe (de volta) e Ratso marchassem para a provincia, talvez conseguissem escapar do fracasso total; se Mr. América e Billy fôssem direto para Nova York, encontrariam as psicodelícias de muitas festas iguais àquela de Midnight Cowboy, onde o sonho de Joe se corrobou numa fração, encontrariam hippies, cinema, TV, carinho, e talvez, convite para exibições. Mas circulam na selva mais verdadeira, hostil, e acabam estourando.
A liberdade de sonhar (e o capitalismo enlata muitos sonhos) e o sonho de liberdade total, que não tem lata que o contenha. Aí está o entrecruzar de dois filmes americanos, onde a capacidade polêmica é intensa. Em Easy Rider, talvez pela primeira vez - pelo menos fora do âmbito do cinema de underground - a droga não é condenada, não é encarada sob o crivo moralista. Em Midnight Cowboy, nada também de moralismo. Mais uma vez, o crime compensa (ou não é punido) nem o herói "se reabilita" ao tomar a lição - aprende apenas que, no sorvedouro do mundo de competição, do self-made man, qualquer crime vale, desde que não seja descoberto e condenado.
Se Easy Rider tem o seu morceau de bravoure na sequencia psicodélica no cemitério, onde impera a acronologia dos planos, Midnight Cowboy apresenta o seu, perto do início, na cena em que Joe vai para a cama com a cinqüentona do cachorrinho e, Rolando ambos sôbre o seletor de canais, fazem mudar sucessivamente as imagens no vídeo - os téle-orgasmos.
Dois filmes – dois homens em situação em carda filme - duas odisséias onde o tema é a alienação do sistema. Easy Cowboy - Midnight Rider.
Correio da Manhã
12/04/1970