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2001: Cinema Ano I

"Poderá Deus fazer uma pedra tão pesada, que êle mesmo não consiga erguê-la? Se não o consegue, existe um limite para seu poder, ou, pelo menos, assim parece; e se consegue, isto também parece constituir uma limitação para seu poder. É fácil usar êsse impasse como um sofisma verbal, porém, êle significa mais. O paradoxo dessa questão é um daqueles muitos que se centram na noção de infinito, em suas múltiplas formas."
"O conhecimento está inevitavelmente entrelaçado com a comunicação, o poder com o contrôle, e, a avaliação dos objetivos humanos, com a ética e todo caráter normativo da religião."
"Assim como a tecnologia torna-se cada vez mais apta para atingir os objetivos humanos, ela deve-se tornar cada vez mais habituada a formular objetivos humanos."

Norbert Wiener (God & Golem, Inc.)

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Não há revolução cultural sem estar imbuída, para o futuro, da participação básica e imediata da máquina, da tecnologia, no processo de criação. E
2001: A Space Odyssey (em cinerama, superpanavision e metrocolor) é isto: revolução no cinema; com forma de cultura, teoria do conhecimento. Como relação à faixa filosófica e os aspectos ontológicos e epistemológicos da ciência, em meditação acionada pelo filme, Vilém Flusser, pelo menos de modo sintético, esgotou o assunto quanto ao essencial, em artigo publicado no Suplemento Literário de O Estado de São Paulo, a 3 do corrente. Êsse trabalho instigante serve para e videnciar as inúmeras aberturas de Uma Odisséia no Espaço, a fim de se especular no campo da inteligência - afinal, uma das coisas que permanece intencionalmente em jôgo nesta fita. Muitos cineastas inventam processos, e operam atos de reflexão através do cinema (Godard, Resnais, Bresson, Antonioni, Bergman, etc.), no entanto, abolindo muitas vêzes o espetáculo. Kubrick fêz do espetáculo, não só um suporte (como os suportes dos signos), mas uma indução ao ato de reflexão, em última instância, de conhecimento (a arte ou a criação em geral inserem uma modalidade de conhecimento). Porém, o que sobreleva, dentro disso, é também o ápice do espetáculo, com o máximo de pujança material e científica de que, até agora, pode o cinema se socorrer. Trata-se da abertura de uma grande tradição natural, cujos pontos luminosos podem ser discernidos em Marienbad, Maytime, The Great Waltz, Vertigo, Lola Montés e algumas outras obras antológicas.
A odisséia do filme. Pode-se traçar uma cronologia radical dos que o entenderam como linguagem e atuaram sôbre ela e a transformaram: Griffith, Eisenstein, Chaplin, Murnau, Hitchcock, Welles, Ophüls, Resnais, Godard. E agora Kubrick. (Outros, como Truffaut - Jules et Jim, ou Bergman - Persona, com um só filme poderiam figurar naquela cronologia). Aliás, a carreira de Kubrick já era uma linha de coerência criativa, polêmica, inconformista, desde Killer's Kiss (A Morte Passou por Perto) e seguindo em frente, com The Killing (O Grande Golpe), Paths of Glory (Glória Feita de Sangue), Lolita, Spartacus, Dr. Strangelove (Dr. Fantástico) e, após um hiato de cinco anos, preparando o advento de 2001, essa sua odisséia no espaço-tampo filmico & filosófico.

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Dentro da expressão adotada por Décio Pignatari, de "crise do artesanato desfechada com a segunda revolução industrial", o têrmo arte, usado com relação ao cinema, somente seria apropriado no tocante a uma visada genérica de seu caráter ontológico, ou seja, o da gratuidade essencial que envolve todo objeto estético. Como linguagem ou instrumento, o cinema poderia ser considerado como forma industrial de criação (é e sempre foi também administração). E se é a primeira forma de criação industrial (considerado aquêle elemento de gratuidade essencial) no jôgo eterno da imaginação formativa, não vamos chamá-lo de sétima arte. Pode ser a primeira arte industrial ou, então, de modo permanente, a oitava maravilha do mundo. E 2001: Uma Odisséia no Espaço é a primeira maravilha do cinema. O desafio do cinerama foi aceito, vencido e desenvolvido. Bastava haver um programador do texto fílmico, um administrador criativo do porte de Kubrick.

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Na "alvorada do homem", em sua ambiência orgânica, primitiva e paleolítica, os macacos, os pré-individuos, encontram o monólito fincando no solo, o primeiro objeto geométrico, neolítico, dentro do mundo animal. Em analogia à concepção de Engels, de que a revolução social básica da humanidade foi a passagem do homem, do estágio nômade para o sedentário, pode-se dizer que a grande revolução do artesanato e a primeira ou inauguração da arte (a 2ª, para a arte, é também a segunda revolução industrial) foi a passagem do período paleolítico (pedra lascada), para o neolítico (pedra polida). Os pré-homens vêem a forma racional, geométrica. Aí então - só aí - começa a linguagem, onde tudo antes era língua, nos pródromos da atividade simbólica. Aí, também então, a descoberta do instrumento (acionador da linguagem), materializada o osso, que é brandido euforicamente e, após, atirado no ar. Em decorrência, a maior elipse de tempo anedótico na história do cinema. O osso da pré-história sobe ao ar e já é nave espacial, ao som do Danúbio Azul.


Poucas coisas tão belas registra o cinema como aquelas naves percorrendo o espaço cósmico ou as pessoas circulando dentro delas, ao som daquela valsa de Strauss. Nada surpreendente - tudo muito lógico e racional. Há muito tempo, em entrevista ao Cahiers du Cinéma, quando filmava Glória Feita de Sangue, Kubrick disse que o criador cinematográfico que mais admirava era Max Ophüls, o cineasta da valsa, o homem que, em sua formação vienense, de dentro da ambiência do romantismo aristocrático e burguês, operava destruição dêste último. Kubrick, assim, com a emoção do giro da valsa, soube utilizá-la funcionalmente na emoção do giro no espaço cósmico. E só poderia ser o Danúbio, porque azul é o espaço cósmico. Críticos, como Philip Strick, em Sight and Sound, ou a revista Playboy, em seu número de julho, souberam dar a importância evidente a êsse elemento melódico . O ether da valsa.

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Uma montagem funcional de fluência (talvez inexista corte de efeito dentro do filme) faz deslizar o encantatório visual, com a câmara, colocada numa espécie de roda-gigante, fendendo os descortinando, de maneira circular, o espaço e o décor fabuloso, com travellings e panoramas. E tudo é precisão e cuidado nos menores detalhes, desde os aparatos, a arquitetura dos sets e as vestimentas dos sêres em situação extraterrena. Aqui também brota a dialética entre conhecimento e comunicação, a inferir aquela entre criação e imaginação, cinema e realidade. Emerge, assim, o problema do super-homem ou do deus. Aquêle ôsso do pré-homem leva-nos a Hal, o computador infalível, à prova de êrro - Hal que conduz a imensa nave e sua tripulação até Júpiter, onde existiria uma forma de vida e de inteligência talvez superior. O homem fêz Hal, não só à sua imagem mas à sua imaginação projetada de busca da perfeição. Quando aparece o êrro, Hal jamais poderá admiti-lo, pois a sua ontologia é a programação do infálivel. Mas o homem é sempre falível; dai a impossibilidade de diálogo, assim como inexiste diálogo racional com o mito (encarnações ou concretizações da verdade coletiva que a razão nunca poderá, só ela, efetuar) ou deus ou os deuses. O homem volta-se para ai mesmo; como o poema de João Cabral de Melo Neto De um Avião (aqui, poderia ser De uma Astronave) "o homem que é o núcleo do núcleo do seu núcleo". O fim da lógica e da memória de Hal, como Bowman dependurado dentro do cérebro da máquina como se estivesse sôlto no espaço cósmico, é o fim de deus - isto é relativamente (de uma razão "superior"), na medida em que o conhecimento vai suprindo o desconhecido que e infinito, mesmo porque o conhecimento abre sempre novas áreas de desconhecimento. Mas, doravante, para Bowman, será o desconhecido total, além de Júpiter pelas galáxias, como em transe lisérgico, onde o informal das imagens abstratas que dominam o Cinerama demonstrasse então que havia tôda uma linguagem a ser criada e manipulada. Ao fim envelhecido mira-se no espelho - naquele fluxo da entrada insólita com vestes de astronauta, num décor de há quase dois séculos (rimando com o Danúbio Azul) - é o homem diante de si próprio. Vê-se em várias outras etapas de sua idade e, ao término no leito como um misto de feto e ente senil, lá está contemplando o monolito (aquêle mesmo monolito encontrado na Lua, cuja projeção guiou-o de certa maneira a êsse fim-início de epopéia, onde a noção de tempo e de espaço desapareceu).
Nem tempo nem espaço, nem espaço-tempo. Nem Newton, Euler ou Einstein. Resta o feto eterno no espaço. É suficientemente simbólica a configuração, bem como a mensagem geral: mais do que nunca o superavanço da ciência, com o salto cósmico levando-nos ao desconhecido. Mais do que nunca a precisão, paradoxalmente, será substituída pela imaginação. O resto é silêncio espacial.

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Também o culto à razão conduz ao irracional. Mas, aí, reside a criação, que inverte êsse modo de operar. É o próprio desenvolvimento da química, melhor dizendo da psicofarmacologia, com o exemplo dos alucinogênicos, que nos leva àquilo que Alain Resnais definiu como o "espetáculo do inconsciente". O crítico do Time notou com acuidade: "Kubrick prove o espetáculo com o equivalente mais próximo da experiência psicodélica". A abertura ao conhecimento é feita para dentro e para fora. Para fora, o filme em sua evidência (e em Kubrick também um pouco da meditação, na base de o filme sôbre o filme - re Mallarmé, Igitur, o vazio, o Nada - "o nada havendo partido, resta o castelo da pureza"). Pois também, no fim, a câmara avança em travelling rapidíssimo sôbre o monolito, até que a verticalidade dêste último se alastre e ocupe a horizontalidade do cinerama. O signo é mais do que evidente: o filme voltou-se sôbre si mesmo, denotou-se como imaginaçao criadora, espetáculo de reflexão intensa. O cinema segue a mesma razão que imanta a imaginação do homem pelo espaço interno de si mesmo e externo e extraterreno. A odisséia é um giro.

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Resta, entre outras inúmeras sugestões de 2001, aquela da criação (em sua gratuidade essencial) aliada à ciência. A imaginação do cosmos - daqui a pouco, talvez baste permanecer dentro de um cinema para senti-la como realidade sensorial e intelectual, e talvez o filme venha a ser dirigido por um computador eletrônico. O resto é arte.

Correio da Manhã
11/08/1968

 
Uma Odisséia de Kubrick
Revista Leitura 30/11/-1

As férias de M. Hulot
Jornal do Brasil 17/02/1957

Irgmar Bergman II
Jornal do Brasil 24/02/1957

Ingmar Bergman
Jornal do Brasil 03/03/1957

O tempo e o espaço do cinema
Jornal do Brasil 03/03/1957

Ingmar Bergman - IV
Jornal do Brasil 17/03/1957

Robson-Hitchcock
Jornal do Brasil 24/03/1957

Ingmar Bergman - V
Jornal do Brasil 24/03/1957

Ingmar Bergman - VI (conclusão)
Jornal do Brasil 31/03/1957

Cinema japonês - Os sete samurais
Jornal do Brasil 07/04/1957

Julien Duvivier
Jornal do Brasil 21/04/1957

Rua da esperança
Jornal do Brasil 05/05/1957

A trajetória de Aldrich
Jornal do Brasil 12/05/1957

Um ianque na Escócia / Rasputin / Trapézio / Alessandro Blasetti
Jornal do Brasil 16/06/1957

Ingmar Berman na comédia
Jornal do Brasil 30/06/1957

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