A grande importância da obra de Jean-Luc Godard consiste, no geral, em haver transformado o cinema numa coisa bastante diversa do que era antes, ou como tal se concebia. O cinema era imagem, por exemplo, na época do mudo. Mas uma fita, como o Encouraçado Potemkim, de Eisenstein (cuja grande importância, por seu turno, foi a de haver estruturado e conferido fundamentos rítmicos à montagem na base de cortes) apesar de tôda a machine-gun cut, de todo o aparato plástico-arquitetônico, continha uma simbologia que nos remetia ao aparato linear, literário, de apreender e conjurar as coisas e acontecimentos. Ao contar a sua história a respeito da revolta dos marinheiros, Eisenstein foi dinâmico e revolucionário na superfície, porém estático e conformista no fundo, na essência, no processo, na estrutura - isto se partirmos do pressuposto de que a intelecção de uma arte industrial não pode mais estar submetida aos mesmos princípios que obriga o início-meio-fim do artesanato.
Depois, o cinema ganhou som e palavra. Mas a faixa sonora limitava-se a ser uma complementação ou reiteração dos signos visuais, do ôlho da câmara. E quando tomavam a iniciativa da significação literária, o filme fracassava exatamente por isso - pela impotência em se transmitir uma informação estética nova, que não fôsse mediante a imagem em movimento. Dida-se na época da estética plástico-rítmica do cinema (cujo apogeu se deu com Orson Welles e algumas operetas e musicais da Metro Goldwyn Mayer) que a sétima arte, pela sua natureza francamente visual, estaria proibida de abordar os assuntos ditos profundos ou filosóficcs, porque ficaria geralmente com suas virtualidades amputadas. Na época, o western era tido como "o gênero por excelência", justamente por causa disso: a sua história invocava ação física quase permanente, a câmara então tinha também de correr e o montador encontrava diversas opções para cortar com brilho. Trata-se do cine-espetáculo, válido, mas não único. Mas, na verdade, o gênero por excelência do cinema já era o thriller (tudo começando com o grande Hitchcock), porque os seus elementos básicos, de ordem catártica e emocional - o susto, a tensão, o mêdo, o suspense - só poderiam ser conferidos por esta forma de arte industrial e, nunca em sua intensidade, por nenhuma outra, ou seja, a literatura ou o teatro.
Dai, tirante uma ou outra experiência de integração plenamente estrutural da faixa sonora, a significação repousava na imagem, embora, como já se frisou, o encadeamento de imagens invocasse um raciocinio logístico clássico. O uso do flash-back ou do onirismo. Serviam apenas para tornar complexo o quebra-cabeças no sentido de ''o que êle queria dizer com isto?" o filme há muito já era linguagem, mas uma linguagem que ainda renunciava a uma das suas potencialidades: o som. Godard inverteu o esquema nos seus últimos filmes. Em obras como La Chinoise ou Deux ou Trois Choses que Je Sais D'Elle a imagem é - materialmente - uma quase espécie de suporte para os signos verbais. Godard tem, inclusive, a tendência de filmar palavras, letras ou frases. Porém, ao envidar um nôvo nexo estrutural, que já buleversou o conceito de cinema, êle jamais está sendo literário, como parece à primeira vista. Ao contrário de Eisenstein, por exemplo, os seus filmes mais radicais são literários na superfície e não-lineares no fluxo significante.
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Tôda a busca godardiana é a da linguagem. Êste seria o seu grande tema mais permanente. Junto e a partir dêle, brotam especulações instigantes com relação a conceitos, tais como liberdade, dialética e revolução. Vai ao âmago das questões em tôrno dêsse complexo, porque não tenta descrever situações simbólicas. O símbolo, como representação de objetos e sentimentos, inexiste no cinema de Jean-Luc. Então não há também o que decifrar ou decodificar em têrmos de uma operação logística. E quando o espectador penetra no seu fluxo e, em conseqüência, liberta-se do verdadeiro preconceito literário, não sentirá monotonia com a câmara estática e uma pessoa, também parada, sendo filmada a falar incessantemente durante cêrca de cinco minutos. Isso ocorre amiúde, tanto em La Chinoise, como em Deux ou Trois Choses que Je Sais D'Elle. Trata-se de uma espécie de documentação dialética de um realismo da comunicação.
Ao procurar a essência da linguagem, JLG faz a sua recherche da linguagem mais atuante do cinema através da relação entre o comportamento humano - o estar dos sêres filmados - e as coisas que os cercam ou, a êles, se justapõem. Como já disse Merleau Ponty, na Fenomenologia da Percepção, a velha noção clássica das relações entre sujeito e objeto está falida. É preciso achar o nexo dialético dentro desta outra noção moderna de que a inteligência percebe relações e, assim, não existe o absoluto de sêres, coisas ou fatos em si mesmos.
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Duas ou Três Coisas Que Eu Sei Dela é um filme dialético e revolucionário como A Chinesa (esta última ainda proibida devido a uma patuscagem mental da censura, mas com a promessa do ministro da Justiça de flitar bom senso sôbre o strip-tease intelectual de suas autoridades subalternas). O approach filmico e a estrutura da ficção documentada ou do documentário fictício são diversos. Agora, o centro da focalização se refere à existência comum, média e mediana, da Juliette (Mafina Vlady), casada, dois filhos, marido garagista & aluguel do corpo dela para ajudar a viver e a consumir. Aí entra o centro da alienação que é preciso ser varado. A sociedade urbana-industrial do superconsumo ou do consumo comandado pela publicidade que é linguagem (por sinal, das mais concretas). Inexiste azul ou sentido em competir a cada minuto ou se render, seja para comprar um novo vestido ou ajudar a pagar a matrícula dos filhos. A publicidade, um dos alvos preferidos de Godard, já ensejara aquela seqüência notável de Pierrot Le Fou, onde, numa recepção do grand monde, todos os convidados falam em tom e têrmos de anúncios e propaganda de produtos. Agora, no desfecho, depois de vermos Vlady & marido na cama comum da vala comum do lugar comum, focalizam-se inúmeros produtos em sua embalagem original sob a relva bem verde - a linguagem a serviço da vala final de uma sociedade capitalista. Não se trata de símbolo, nem, aqui, de interpretarmos. Godard coloca os objetos diante da câmara carregando na própria especificidade física visualizada o seu absurdo. Isso porque, noutra cena, ou em inúmeras cenas publicitárias, uma mulher toma banho cercada de todo um aparato de perfumaria e lingerie: um banho não é um banho e, sim, pretexto para um ritual.
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Os filmes de Godard dão a idéia de prolongamentos do cotidiano, tal a naturalidade, o caráter informal com que são construídos. Não se pode analisá-los com o arsenal de métodos empregados para aferir determinados cronogramas estéticos. Não se desejam obras primas e o próprio cineasta já falou em seu sentido de efemeridade, em contraposição à busca do eterno da obra para ser guardada em museu. Não são, por outro lado, feitos para divertir e, sim, para pensar. As meditações sôbre o problema da linguagem que encerra Deux ou Trois Choses que Je Sais D'Elle são das mais agudas que encontramos e - aí sim - levando a vantagem sôbre os livros - e o tempo e o esfôrço demandados por sua leitura - atacam com o impacto da complementação da imagem. A imagem reforça, não o som, mas a meditação, consumada em forma de monólogos ou diálogos.
É preciso mudar tudo. O Cinema de Godard incita à ação do pensamento para que se procure saber como agir para mudar. Pois o cinema, com êle, já mudou e muito.
Correio da Manhã
17/03/1968