O aspecto global a ser reparado em tôrno de uma obra tão importante como Teorema é o fato de que Pasolini, abandonando qualquer tendência estratificada, realiza um filme essencial sôbre a procura. Não está mais (ou apenas) falando o cristão ou o comunista. O teorema básico é o da destruição total e da reconstrução radical. A procura exige renúncia e despojamento.
A parábola sôbre um tema religioso, como o da visita, obtém uma densidade cinematográfica inédita e uma fabulação simples e original. Mas, ao contrário do entrecho literário, a fita não se apóia forçosamente nessa fabulação, no argumento em si. A narrativa flui, amiúde quase silenciosamente, mediante imagens simples em grande parte das seqüências, porém dotadas de admirável capacidade de envolvimento.
Visita e partida. O anjo demoníaco (Terence Stamp), quando chega àquela mansão de família abastada da alta burguesia, atrai inapelávelmente tôdas as pessoas que, a êle se oferecem a fim de que inocule a sua mensagem - não mensagem num sentido logicista ou explicativo de comunicação verbal e, sim, no sentido de indução ou revelação. O ato sexual, como puro instrumento mecânico de transmissão dessa mensagem, que coloca as pessoas numa espécie de estado de graça para a mudança, não deixa de desdobrar outras implicações, como aquela outra também da própria comunicação integral entre os sêres humanos.
O anjo belo. Mas como diz Rilke, nas Elegias de Duíno, o belo é o primeiro degrau para o terrífico - aqui, o terrifico no sentido de purgação. O que ocorre com a maioria das pessoas possuídas pelo anjo de Teorema é terrível, mas necessário e apenas cunhado pela eventualidade da etapa. O jovem descobre a inutilidade do seu artesanato pictórico, do abstracionismo que é negação, e sai de casa em busca de outras coisas. Notável a cena em que, imponente sôbre o azul do quadro a óleo pousado no chão, urina em cima da tela. A mulher (e, novamente, Silvana Mangano com o rosto admiravelmente talhado por Pasolini - rosto branco de estátua) entrega-se ao trottoir motorizado, imolada na procura do visitante na figura de todos os jovens que recolhe em via pública. Depois, a sagração na Igreja. A môça começa a fenecer imediatamente e morre em função da própria revelação. A criada, depois de abandonar a casa, ungida dos podêres paranormais, opera milagres e curas fantásticas, em sua vivenda pobre. Ganha levitação e, depois, numa cena extraordinária, pede para ser enterrada, ficando tão-somente os olhos de fora. O industrial (uma reaparição do ator Massimo Girotti, em excelente papel) doa a fábrica aos operários e, na estação de trens, despe-se publicamente e corre para o deserto. É o deserto que perpassa entre várias imagens do filme. Lá, disparando nu sôbre as areias, emite um berro lancinante - é um dos momento mais pungentes e vigorosos da história do cinema. Voltando a Rilke (via Manuel Bandeira): "Fôrça é mudares de vida" - tal como após a visão do torso arcaico de Apolo, assim será após a visão do anjo e do filme.
Depois de fechado o ciclo da fossa elaborado por Antonioni (que, no impasse, disparou em galas para o espetáculo, em Blow Up), com Visconti, Fellini e Rosselini atuando em faixa própria, o cinema italiano iniciou a sua renovação. Rosi, Olmi ou mesmo Samperi (cujo filme Obrigado Tia!, também não deixa de ser uma grata revelação), além de muitos outros jovens, cujas fitas aqui ainda não chegaram, representam isso. E, ao lado dêles, embora mais velho, vem Pasolini. Talvez seja a própria inquietação, o inconformismo e o esfôrço de renovação teórico que geram a desigualdade em sua filmografia, onde ao lado de uma obra básica, como Teorema, ou de uma fita de impacto, tal como O Evangelho Segundo São Mateus, pairam produtos inócuos, como Gaviões e Passarinhos ou desiguais, como Édipo-Rei. Agora, com a libertação de hábitos e estratificações filosóficas e religiosas, encontrou caminho inédito. Teorema é isso mesmo: tema & teoria. - abertura radical do cinema.
Correio da Manhã
26/03/1969