Minha Noite Com Ela (Ma Nuit Chez-Maud) serve para colocar a indagação no sentido de que até que ponto a atual maturidade técnica do cinema já lhe permite o espetáculo de idéias, deixando em plano paralelo a problemática de renovação permanente da linguagem. Enfim, o filme filosófico, uma espécie de "conto moral", à la Diderot, sem o suporte do mundo do alfabeto substituido por outro muito mais rico no aspecto material. Pois, pelo máximo do paradoxo, o que se projeta do conjunto dessa fita não é o brilho dos diálogos, pontilhando tôdas as cenas, mas o encantatório em sua plenitude. Um encantatório também baseado no prêto-e-branco em tela não panorâmica. O diretor Eric Rohmer dizia que o assunto assim o exigia, para "éviter le joli pour essayer d'obtenir le beau" (evitar o bonito a fim de tentar obter o beto).
Nascido em 4 de abril de 1920, em Nancy, Eric Rohmer era um dos principais críticos da grande fase do Cahiers du Cinéma aquela responsável pela reviravolta do cinema francês e dos próprios conceitos do cinema em geral. Formava na trincheira, ao lado de Godard, Truffaut, Chabrol, Doniol-Valcroze, Jean Domarchi, Feredon Houveyda, Philippe Demonsablon e outros. Os quatro primeiros citados tornaram-se cineastas bem conhecidos. Rohmer já havia, em 1950, se iniciado no curta-metragem, com Journal d' un Scélérat, logo seguido por vários outros. E, também no longa-metragem, tinha começado bem antes daquela brilhante geração Cahiers dar sinal de vida: em 1952, filmou o inacabado Les Petites Filles Modeles. Em suma, em 1959, realiza o seu primeiro filme completo, Le Signe du Lion. Depois, além de Ma Nuit Chez Maud, com La Collectioneuse e Le Genou de Claire principiou a elaboração de seu ciclo de "contos morais".
Quase que como a reiterar o esfôrço de firmar uma escritura cinematográfica, vale observar, neste filme, tal como nos de Godard ou Truffaut, a presença física do livro. A afirmação de uma das bandeiras teóricas da nouvelle vague. E é essa conciliação do filme com o livro que permitiria o espetáculo das idéias.
Seriam, então, ainda com o pensamento no livro, as imagens cinematográficas ilustraçoes móveis da história que se narra a pretexto de uma idéia que se desenrola? Por muito ou por menos, Rohmer, aqui, foi bem mais longe do que experimentaram outros na mesma trilha. Trata-se de uma questão de sensibilidade (de "arte") para evitar a piège da monotonia. Por isso, sem o mesmo brilho dos lances dramáticos, o seu filme se aproxima do grande clássico de Mareei Carné, Les Enfants du Paradis (O Boulevard do Crime). Mas a comparação para no terreno das idéias. Naquele concernente ao estar do ator, Ma Nuit Chez Maud inova profundamente. Nunca nos lembramos de ver isso no cinema: um filme de diálogo rico, filosófico, altamente refinado, destituído de qualquer laivo teatral, ou seja, o realismo, a naturalidade do comportamento dos atôres é extraordinário. Como Jean-Louis Trintignant procura um fósforo, puxa uma cadeira, responde a um chamado, como Françoise Fabian (notável, na grande oportunidade de sua carreira) pega uma coberta, olha para os interlocutores, acende para a filha a árvore de Natal, como Antoine Vitez se encontra com Trintignant, fala com Maud, consuma um gesto. Tudo isso, em obra onde a ação é nula, a idéia é tudo.
Na sôbre-estrutura, a história é simples (se não levarmos os diálogos em consideração): um engenheiro retorna ao seu país, depois de ter trabalhado algum tempo no estrangeiro, e se instala em Clemont-Ferrand. Vê, por acaso, uma ciclista loura, primeiro na rua, depois na igreja, e se convence de que casará com ela. Reencontra um antigo colega, professor de Filosofia na universidade do local, reencetam rapidamente a amizade e êste último leva-o à casa de Maud, uma amiga doutora, divorciada. Entabola-se uma discussão filosófica-ética-existencial entre os três, depois Vidal se retira algo agastado por ver a preferência dela pelo amigo, mas não acontece nada, porque o protagonista hesita entre seus princípios e o que a vida simplesmente lhe oferece. No dia seguinte, encontra novamente a ciclista, desta vez consegue falar com ela, vai parar como hóspede de um dia em um quarto ao lado ao da môça - afinal se casam. Cinco anos depois, nas férias, o casal já com um filho, encontra Maud na praia; esta reconhece, na mulher do amigo, aquela que havia sido amante de seu marido.
Na infra-estrutura, o que se coloca em questão é a história filosófica de Blaise Pascal, Pascal em situação, a conciliação do mistério religioso com as ciências exatas - o que iluminaria em definitivo a metafísica. Assim se expressou o crítico Gilbert Salachas: "por detrás do humor, a gravidade da alma; o limiar de uma meditação essencial: mais do que um conto moral, um conto metafísico." ·
Pode-se constatar nas Provinciales, de Pascal, a relacão misteriosa com Deus tratada como se fôsse um problema geométrico.
Não foi por acaso, evidentemente, que Rohmer localizou o entrecho em Clermont-Ferrand, lugar onde exatamente nasceu Pascal. E, assim como êste, o protagonista é matemático e religioso, católico praticante. Vêmo-lo sair da missa, do absoluto da igreja, e entrar numa livraria, folheando volumes a respeito de cálculo das probabilldades.
E é também coadunar o amor na Terra com o amor pela idéia de Deus. Aliás, um problema atualíssimo: controlar o acaso, programar a vida esplritual. De novo o absoluto, da igreja e da matemática. Em sua obstinação idealista, o protagonista cumpre geometricamente o seu futuro previsto, apesar das perplexidades e da aceitação parcial dos esbarrões da vida. Casou-se com a môça que vira uma só vez: o cálculo de probabilidades, a aposta pascaliana, o amor e a chance; encontrar e, nisto, o encontro de sentimentos, a convergência em direção ao céu, à razão. Da mesma forma, o cineasta armou geometricamente as situações e seu desenrolar. A arte é um jôgo e, aliás, assim sempre foi.
Minha Noite com Ela nao traz concessões; não é um filme para quem deseje diversão, entretenimento, passatempo, paliativo, recreação. Talvez mais um filme para produtores de idéias de cinema e consumidores de idéias específicas. O que se admira no diretor, além do brilho do assunto e sua exposição concentrada, é a concisão, o rigor de elaboração – parece que nada ficou fora do lugar. Também não é um filme destinado a gerar influências determinadas, mas, possivelmente a fazer repensar o próprio conceito de cinema e sua função.
Infelizmente não conhecemos os outros filmes de Rohmer, nunca exibidos aqui. Mas êle bem pode já traduzir um caso à parte no processo do cinema: ilha de idéias.
Correio da Manhã
15/01/1972