De novo, em reprise, Playtime, uma das melhores comédias dêstes últimos anos, do melhor comediógrafo do cinema: Jacques Tati. A sua importância foi a de, por um lado, haver conferido à elaboração do gag uma sutileza e uma sofisticação até então quase inusitadas (mais no espírito Buster Keaton), livrando-se da simples repetição da correria e do pastelão, e, de outro lado, ter introduzido o uso do silêncio no cinema de um modo extremamente pessoal - silêncio êste que nada tem a ver com qualquer saudosismo estético do filme mudo.
Tati iniciou-se no longa-metragem, realizando logo uma fita muito divertida que chamou a atenção da crítica: Jour de Fête. A seguir, com Les Vacances de M. Hulot assinalou a sua primeira obra antológica: sátira ao tédio da burguesia, a partir da ida de um grupo de pessoas a uma estação de repouso. Depois, talvez ainda o seu maior filme, Mon Oncle, com fotografia admirável em côres, crítica aguda ao pretenso racionalismo urbanístico e arquitetônico, que elimina a natureza e o estar simples da vida dos indivíduos e, como sempre, sátira feroz da desumanização do comportamento.
Playtime, outra vez em côres e no espaço de 70 milímetros, se não repete, em têrmos de ritmo, a proeza, de Les Vacances e Mon Oncle, mantém-se na mesma altura em várias passagens. Reaparece o personagem típico de Hulot, que êle caracterizou desde o segundo filme: o homem excêntrico, silencioso, desajeitado para os detalhes da vida moderna. É ver os seus desencontros e perplexidades, de saída, no imenso edifício metálico, onde quase tudo funciona na base de comandos eletrônicos. São uma infinidade de botões, escadas rolantes, portas que se abrem e fecham sozinhas, elevadores autônomos etc. A parte inicial é uma espécie de transe kafkiano em tom burlesco, terminando tudo no vaivém feérico pelos stands de um mostra industrial, onde os desencontros demarram em cadeia.
A segunda parte pode ainda ser considerada como o seu maior tour de force, durando cêrca de uma hora. É a inauguração do night-club, aonde vão ter os turistas e Hulot. Os gags se sucedem, ininterruptos, atingindo-se a um climax de delírio, onde tudo se destrói pelo desentendimento entre personagens e décor. São os arabescos das cadeiras que marcam as costas das mulheres, o ar refrigerado que entra em pane, os garçons que se atrapalham, a porta giratória da entrada a provocar cenas hilariantes, o bar com suas banquetas minúsculas, de onde tomba o bêbado. Ao final, a ida à lanchonete, no alvorecer, quando então se pode reconhecer Paris, a verdadeira Paris humana de Tati. O único defeito assinalável em Playtime, mas que não empana demais o espetáculo, se resumeria lentidão de determinadas passagens, decorrência do espírito minucioso do realizador em vasculhar todos os elementos possíveis de uma dada situação. Apesar disso, uma fita inesquecível. E sempre a musiquinha de fundo que é uma herança direta do estilo de Chaplin.
Correio da Manhã
11/08/1970