Fritz Lang completou 80 anos. Oitenta anos de vida, mais de meio século de cinema, de um cineasta que sempre procurou ser coerente com seus princípios éticos e com a afirmação da humanidade. No início de sua carreira, com a sua formação de arquiteto, deu ao expressionismo alemão, do qual foi uma das grandes figuras, o encanto e o ímpeto de algumas das mais belas imagens daquela época de efervescência. Depois, com a proximidade do nazismo, as trombetas de Hitler soando, renegou as ofertas de Goebells e partiu para a Meca do Cinema: Hollywood. Lá, apesar de tôdas as dificuldades, procurou reafirmar os ideais estéticos, vinculados àqueles éticos de afirmação da liberdade, também a liberdade essencial do homem. A motivação e a responsabilidade do cineasta sempre foi um fator de meditação para êle. Talvez em seu longo período americano, não tenha oferecido, em quantidade, obras com o mesmo brilho antológico do fecundo período experimental do expressionismo - isto devido a injunções naturais, profissionais e comerciais. Mas permaneceu o mesmo rochedo, resistindo às marés de mediocridade. Enfim, há quase dez anos, resolveu parar de filmar ("Era a hora dos mais novos."), embora houvesse reeditado, na Alemanha, um admírável filme em série expressionista, O Tigre da Índia, e um não menos admirável retôrno do fascismo demiúrgico do dr. Mabuse (Os Mil Olhos do Dr. Mabuse).
Mas, se parou, não envelheceu de espírito, não ficou "out of key with his time". Nos dois festivais internacionais do filme, aqui na Guanabara realizados, em 1965 e 1969, estêve presente de ponta a ponta, e o demorado contato com êle serviu para revelar uma personalidade aguda, interessada, polêmica. O convívio com Lang mostrou um homem sólido, talvez sofrido, marcado por uma outra época, mas se esforçando em participar intelectualmente, emocionalmente, da atual. E sabe, como poucos, entremear o debate sério com o lazer do appeal mundano. Para demonstrar a sua capacidade de compreensão basta lembrar que Jean-Luc Godard, pelo menos até 1965, era um dos cineastas de sua predileção - o mesmo Godard que, melhor do que ninguém, ao utilizar Lang como personagem e vivendo a si próprio, em Le Mépris, soube figurar, nêle, a integridade do artista diante de um sistema, onde, como dizia o produtor, interpretado por Jack Palance, "ao ouvir falar em cultura, saco o meu talão de cheques."
Fritz Lang é um daqueles diretores que merece, sem dúvida, permanecer no pantheon do filme, ao lado de nomes como Chaplin, Eisenstein, Murnau, Clair, Griffith, Buñel e outros. Aliás, a grande ensaísta Lotte Eisner prepara (ou já terminou) um amplo estudo estético e biográfico sôbre êle, aquêle que soube dizer: "Acredito na rebelião artística. Creio que novos enfoques, novas formas são necessários para refletir o mundo transformado em que vivemos. Mas não creio que a única alternativa para o açúcar seja o veneno. Se mantivermos nossos olhos e ouvidos atentos, acho que haveremos de descobrir que o público, de certo modo, está enjoado de açúcar, mas sabe que este é mais revitalizante e muito mais seguro do que arsênico."
Correio da Manhã
10/12/1970