O epitáfio de Morte a Venizia é de Platão: "Aquele que contemplou a beleza já está predestinado à morte." Poderíamos aduzir as palavras de Kats, na abertura do Endymion: "A thing of beauty is a joy for ever" e isto se aplica a todos, ou seja, Thomas Mann, Mahler, Aschenbach e o próprio Visconti. É o maior, de longe, é o seu filme definitivo, esta história de amor que (et pour cause) é uma história de arte.
A obra de Visconti sempre manteve uma unidade qualificativa indiscutível. Porém, mesmo nas fitas ma sensacionais - Obsessão, Senso, Rocco e Seus Irmãos - sentia-se a carência do mergulho na revelação, de algo mais decisivo. Esteticismo, decadentismo, homossexualismo, além de um marxismo enrustido, eram as componentes mais freqüêntes de um espírito que se esmerava em sutilezas e detalhes plásticos ou dramáticos, que trazia a dialética tal como metáforas numa bandeja requintada e acabava no mero brilho de uma profundidade superficial. Agora, com Morte em Veneza, Visconti identifica-se por completo rompe com as limitações do seu próprio ritual e cria, não só sua obra-prima, porém um filme histórico. Quem quiser falar em amor, no cinema, doravante terá que se reportar a Morte em Veneza.
Verdade, o amor como leitmotiv para a discussão da grande arte. O eterno debate entre a prioridade do intelecto e das sensações. A tragédia de Gustav Aschenbach, é querer elidir qualquer prazer vital e atingir à grande harmonia (aquela das esferas) mediante a espiritualização pelo intelecto. "Solidão e responsabilidade" - assim referia-se a Thomas Mann o crítico Kenneth Burke, que definia a obra do romancista como uma "epistemologia da dignidade". Sim, porque Mann estava ciente do óbvio, de que a arte é amoral. E, em contraposição, à ética de uma estética, perseguida por Aschenbach, ele põe na boca de seu amigo Alfred a vertente dos argumentos amorais, dionisíacos. Visconti, no filme, expõe todos esses debates em flashes-backs, que se inserem no fluxo da fita consoante a técnica moderna de desprezar os elementos formais de transposição de tempo (pausa, fade-in, fade-out, fusão etc).
Desde o princípio, sente-se o clima da realização. A fumaça da embarcação emergindo da bruma do alvorecer. A grande tomada dos trabalhadores solitários nas extensões lamacentas. A seguir a câmara que se aproxima e, depois, capta o protagonista (vivido por Dirk Bogarde, em notável interpretação). E começa a estação de encantamento com a primeira aparição do efebo (Tadzio, interpretação por Bjorn Andresen).
Última Hora
26/08/1972