Medéia consiste a reafirmação de Pasolini, como um dos cineastas mais originais dos últimos tempos. Sem ter a radicalidade e a importância histórica de Teorema, é uma fita de inegável força encantatória no plano visual, arremate plástico aos lances do cinema de poesia do qual o próprio diretor tanto falava. Vale recordar: Pasolini é também um teórico, um criador consciente (inclusive da barbârie da inconsciência), em dia com os problemas de linguagem e semiótica.
Ao lado de Fellini, Satyricon, ou algum outro menos votado. Pasolini é o único cineasta que consegue recriar e transmitir o impacto do mundo pagão, do comportamento dionisíaco historicamente situado. Isto já se verificara em Édipo-Rei, que foi, no entanto, uma realização desigual. Agora, em Medéia, temos esse impacto em sentido ainda maior de dialética, unidade e grandeza de uma poesia dramática.
Euripides? "Quanto à peça de Eurípedes, limitei-me simplesmente a fazer algumas citações" - disse o diretor. "Retomei, em Medéia, todos os temas de meus filmes anteriores..." "Medéia constitui a confrontação do universo arcaico, hierático e clerical com o mundo de Jazão, mundo, ao contrário, racional e pragmático." "Jasão é o herói atual (lamens momentanea) que, não só perdeu o sentido metafísico, mas sequer se coloca indagações de tal ordem." "É o técnico abúlico, cuja procura está unicamente voltada para o sucesso."
A tragédia da barbárie a qual Pasoloni não deixa de dar conotações atuais: "Todo o drama repousa sobre essa oposição de duas culturas, sobre a irredutibilidade de duas civilizações, uma diante da outra." Pois, consoante ainda a filosofia de Pasolini, as coisas (também as coisas culturais e míticas) não param em definitivo - o parado perpassa, aquilo que herdamos, na história do espírito, fica de certa maneira, e pode redespertar, como redespertou, violenta, a vingança de Medéia. Uma vingança que não mediu, sequer, o sacrifício dos três filhos numa admirável, forjada pelo diretor, a mesclar ternura, pungência, com o ritual de ferocidade.
Um mundo onde o logos ainda não era o centro. A fúria passional de Medéia é aquela que Nietzsche identificava, salutarmente, em O Nascimento da Tragédia. E, por isso mesmo, o auge dessa poiesis antilógica de Pasolini (antilógica e quase antológica) é a imagem final da protagonista exaltando-se e diluindo-se no fogo de ouro do irreparável. Mesmo porque, se a tragédia grega era fatalidade, essa fatalidade, como um dado absoluto, não poderia ter lógica - é o dogma, o poeta inaugura.
Quanto a Maria Callas, entrega-se de modo bastante sincero, efetivo, convincente, ao papel. Boa máscara e senso dramático. Aliás, Medéia já era bem operístico.
Última Hora
05/06/1972