De novo Tati: sim, Mr. Hulot
O homem, para Marshall McLuhan, é um animal de quatro rodas. Êle se referia ao automóvel. Agora é a vez de Jacques Tati, o cineasta de ''As Férias do Sr. Hulot, Meu Tio'' e "Tempo de Diversão'' pôr o automóvel no ôlho clínico de sua câmara, no filme que já está rodando: "Yes, Monsieur Hulot".
É sempre uma boa notícia saber que Jacques Tati está filmando. É também rara - sua filmografia contém, até agora, apenas quatro títulos de longa-metragem, todos êles do maior interêsse: Jour de Fête, Les Vacances de M. Hulot, Mon Oncle e Playtime. O 2.º e o 3.º são obras máximas. Garantem-lhe a palma de melhor cinecomediógrafo da atualidade, depois das realizações mudas de Mack Sennett e das criações de Chaplin e Buster Keaton. Hoje em dia, no encalço de Tati, existe apenas Jerry Lewis, que, no entanto, desperdiça seus "achados" em realizações menores. Jacques Tati renovou o gag, propiciou ao elemento sonoro uma nova concepção expressiva e soube forjar uma visualidade peculiar das pessoas e acontecrmentos. Tornou-se um dos maiores críticos da vida cotidiana moderna nos grandes centros urbanos, cujo excesso de tecnologia e racionalismo conduziu paradoxalmente ao irracionalismo vivencial, de ruídos, correria, poluição, engarrafamentos, enfim, a aura da competição que robotiza os indivíduos em seu estar. As cidades que são refeitas, mais para o bem-estar do automóvel do que aquêle do homem (não é necessário sair do Rio de Janeiro para verificar isso), as cidades que, paulatinamente, vão perdendo os encantos e recantos do lazer, em nome até de uma mecanização do confôrto, cuja demanda em excesso reduz (outro paradoxo) o confôrto em desconfôrto. É o domínio do absurdo. Contra êle, Tati invoca o lazer, o prazer simples de estar no mundo e ter um contato mais direto com as coisas. Como agente perturbador da parafernália institucional, o seu personagem, Hulot, silencioso, excênrico, desajeitado em função do meio, mas cheio de vida e pureza, simboliza uma nostalgia, que pode ser até caricata, mas que dá o toque lírico à dança desvairada, sem sentido, dos bonecos pretensamente humanos.
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Chama-se Yes, Monsieur Hulot o nôvo filme seu, que durante mais de dez meses roda num imenso hangar do aeroporto de Amsterdam, Holanda. A estrêla, depois de uma escolha entre mais de 300 candidatas, chama-se Maria Kimberley. É ela própria quem fala a respeito do tema da fita: a história de um carro fabuloso, do seu vendedor e de um adida de imprensa. Tôda a história se resume na odisséia da ida do carro até Amsterdam, onde se realiza uma exposição - e, quando, chega, depois dos quiproquós sofridos pela equipe transportadora, a mostra já havia sido encerrada. Hulot é o vendedor; ela é a jornalista, que telefona sem parar. Mas o principal personagem parece ser o carro, autêntica denúncia das técnicas de confôrto levadas ao absurdo: sôbre o seu motor, pode-se fazer um bife; quando pára, pode ser alongado de um metro; está equipado com chuveiro e leitos que se abrem e fecham; tem uma máquina de fazer café e que também funciona como isqueiro.
Maria Kimberley reitera: trata-se da sátira frontal ao automóvel, e o comportamento de Hulot, mais uma vez, segundo ela, "basta para revelar tudo quanto êste mundo moderno encerra de ridículo e de desumano".
Tati se encarregou de retomar a linhagem polêmica que Chaplin já - melhor do que ninguém - havia descerrado no seu clássico absoluto: Tempos Modernos (Modern Times) - a maquinização desvairada levando o operário a um estado de pré-loucura dentro da fábrica (uma fábrica que ate no banheiro possuía telecontrôle, a fim de impedir que o trabalhador perdesse um segundo sequer com o lazer). Já dissecou implacàvelmente os fundamentos absurdos de várias atividades do mundo moderno. Em As Férias de M. Hulot (Les Vacances de M. Hulot) ocupou-se das férias da burguesia, que, com exceção de seu personagem e das crianças, constituem, para todos os adultos, uma mera extensão do tédio. Não o tédio que Antonioni incorporou estruturalmente ao seu existencialismo denso e neurótico (em L'Avventura, La Notte, L'Edise e Deserto Rosso), mas, sim, o tédio delineado com o distanciamento satírico da comédia. Em Mon Oncle (Meu Tio - talvez ainda o seu maior filme) ataca a compreensão deturpada do confôrto moderno, eletrônico, sob uma otica funcionalista e que desumaniza gradativamente o dia-a-dia dos sêres que, a êle, se submetem. Em Playtime, já em tela de 70 milímetros, foi a vez do turismo se tornar cobaia - não só o turismo, aliás, mas a organização e geometrização gélida dos grandes edifícios, ou o requinte artificial da vida noturna. E, aqui, como sempre, delineia figuras humanas admiráveis em sua capacidade de desfechar a catarse do grotesco.
Chegou, agora, a vez do automóvel. Mais do que em hora - o automóvel como um dos grandes vilões dos tempos atuais, que devora até vidas: uma enorme população de bichos de quatro rodas que traiu a sua verdadeira funcionalidade. Dentro do cinema, Tati é o maior crítico dos tempos modernos.
Correio da Manhã
13/05/1970