A revolução que Jean-Luc Godard, desde A Bout de Souffle (Acossado), impôs ao cinema continua em marcha cerrada. Em alguns artigos já procuramos demonstrar que o ptincipal aspecto dessa revolução fílmica, iniciada com o estouro das regras de montagem e do uso de campo e contracampo na fita acima mencionada, era o de levar a sétima arte a uma objetividade total, onde o próprio conceito de arte era buleversado naquele mesmo sentido que Walter Benjamin já havia criticado de "aura da coisa" ou falácia do objeto único, diante dos amplos critérios de reprodução maciça forjados pela segunda revolução industrial. Pode-se dizer que, a partir de um filme-chave, como Vivre a Vie (Viver a Vida), onde melhor executou aquela dialétíca básica do nôvo cinema francês, desvendada pelo crítico André S. Labarthe - a fusão entre ficção e documentário - Godard partiu para a objetividade total, onde o filme e a sua própria vivência feita pelos cineastas mesclavam-se em fluxo único. O celulóide e a experiência - a arte-vida. Não o filme sôbre, mas a obra aberta, o filme sôbre também o filme, que inclusive perfaz a sua autocrítica. Godard não faz fitas para antologias segundo concepção tradicional, pois êle mesmo rompe com o conceito, talvez hoje já acadêmico, de "obra-prima" - êsse conceito contraria a tese de Walter Benjamin, que é da maior iniportância e denota êsse escritor, como um dos poucos criticos marxistas que entendiam de fato de estética ou literatura. Pode-se também dizer que Godard soube apropriar-se em parte de alguns princípios do cinéma-verité, de Jean Rouch, conferindo-lhes outra ratio estrutural. Godard admira o espetáculo, o grande cinema de Hollywood, mas é um diretor do antiespetáculo. Acha que, talvez por isso, o mundo tem de mudar - para que os espetáculos sejam mais verdade e menos fantasia, mais euforia vital do que deleite intelectual. Por isso mesmo, a sua nostalgia do grande show não lhe impede a revolução; pelo contrário, fixou revolucionariamente essa nostalgia no seu Une Femme est une Femme, que invocava a saudade dos musicais da Metro.
La Chinoise prossegue enfatizando a revolução estrutural e, em sua essência de informação, constitui um dos raros filmes revolucionários do cinema, porque é uma das obras mais fundamentalmente dialéticas a que assistimos. Daí porque a burocracia dos nossos censores e a burocracia do partido comunista deram-se as mãos para condenar a fita, e êsse conteúdo dialético. A verdadeira dialética só pode fluir no âmbito da liberdade e, por seu turno, esta última é a condição sine qua non, para a objetividade na arte, como ressaltou André Breton. Condenar moralmente Godard por La Chinoise reflete o espetáculo da alienação, tal como foi detectada por Marx. Na entrevista longa que deu ao Cahiers du Cinéma a respeito dessa fita, Godard alegou que consideraria La Chinoise fracassada e reacionária, se, na insistência do engajamento, corresse o risco de desagradar a tôdas as correntes e apenas voltar-se para o próprio problema do cinema. E é nessa mesma entrevista que define o caráter antiobra-prima dos seus filmes, ao dizer: "na época em que comecei a fazer cinema, pensava neste último em têrmos de eternidade" - "agora, realmente, penso nêle como em algo de efêmero".
"Fiz um filme ao qual denominei de La Chinoise e onde adotei - contra as teses do PC Frâncês - aquelas dos escritores de Mao-Tsé-tung ou dos Cahiers Marxistes Léninistes". "Ainda uma vez, o movimento que segui é cinematogrâfico, explicando isto o fato de os CML haverem-no podido tachar de gauchiste, e, a própria L'Humanité Nouvelle, de provocação fascista." "Mas acredito que, se existe alguma dose de verdade nessas opiniões, o problema não é tão simples, pois, no que concerne ao cinema, está mal colocado." Ora, uma das questões mais caras da dialética revolucionária, a qual Godard pretende abordar, reside no saber o que fazer. Muitas vêzes não se sabe. A alienação está no dogma; no pensar que se sabe tudo na base do receituário estático que conduz à burocracia. Na China, por exemplo, muita coisa não se sabe como fazer. A começar pelo cinema, selon Godard novamente: "A ideologia de Doris Day (esquemas dos diálogos, décors, raios de luar etc.) reinava no cinema revolucionário chinês até quarto anos atrás. Então, êles pararam."
La Chinoise é um filme composto de sketches, pseudo-entrevistas, com várias seqüêcias organizadas como se fôssem um happening alegórico daquilo que os cinco jovens, em férias, debatem no apartamento alugado. Algumas dessas seqüências denunciam até uma certa apropriacão do estilo ou mood de Jerry Lewis, como uma delas - talvez a melhor - onde Juliet Berto, com o rosto manchado de vermelho e chapéu de camponesa vietnamita, pede com voz esganiçada socorro a Kosygin, enquanto um avião americano de brinquedo, com focinho de tigre de papel, faz o seu barulhinho de bombardeio. Mas, se o efeito superficial é cômico, não é disso que Godard quer se esgotar. La Chinoise não é uma obra realista (se o fôsse, Godard, em sua lógica radical, iria rodá-la in loco no Vietnam, na China ou nos EUA), é uma obra intelectual, onde fica patente a insegurança natural de uma juventude que, no entanto - ela, só ela - fará a revolução. É necessária, porém, a técnica exatamente numa forma de expressão que brota do universo tecnológico-industrial. E, para Jean-Luc, uma espécie de ética de ação e criação brota com o domfnio técnico. Isto é dialético? É. Só não o é para uma espécie de burocracismo (aquêle mesmo pseudo-revolucionário) que transforma a arte revolucionária em, cartão postal, ou seja, por exemplo, o realismo socialista.
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A burrice das nossas autoridades censoriais, mais uma vez, agride a inteligência brasileira, proibindo-lhe assistir La Chinoise. Por que teriam essas minorias (não as eróticas), enquistadas numa cabina em Brasília, na órbita da ignorância, desfechado êsse pequeno golpe na era dos golpes? Teria sido para assustar o ministro da Justiça, na semana em que têle havia prometido reformular o aparelho da censura? Ninguém sabe. Os próprios censores talvez não o saibam. Evidentemente, como La Chinoise é na realidade uma tita anticomereial, de caráter bastante intelectual, não poderia ser entendida pelos censores. Dizem alguns informes que a justificativa para a proibição era de que êsse filme ameaçava a ordem pública. Mas isso seria somente um rótulo a fim de salvaguardar d desordem mental dos censores. Não entendendo o filme, ouvindo galo cantar sem saber onde; ao ouvirem tanta discussão em torno de marxismo-leninismo, acharam mais seguro (nesta era de segurança nacional) vetar Godard; Com isso, aliaram-se ao Partido Comunista e a alguns mao-mao festivos (o próprio Godard diz que o cinema não influi na ação). Enquanto isso, De Gaulle, uma das figuras mais ridicularizadas no filme, não se preocupou em proibi-lo, nem nos Estados Unidos, no momento empenhado em guerra contra o Vietnam, pensou-se ainda em censurar a fita.
Os extremos se tocam. Tudo isso serve para demonstrar que Godard é realmente - além de o maior inventor do cinema moderno - um cineasta da liberdade e da dialética. O resto é o resto.
Correio da Manhã
10/03/1968