É fácil elogiar um clássico. Difícil é deglutir o novo. Atravessando semanas de exibição em reprise, está em cartaz Acossado (À Bout de Souffle), o primeiro longa-metragem na carreira de Jean-Luc Godard, considerado, na época do lançamento, o cri essencial do espírito nouvelle vague.
Em matéria de cinema, o tempo do processo anda muito depressa. Aquilo que era uma audácia, uma “travessura” ou uma realização de vanguarda, há um decênio, transformou-se em um clássico. Mas, há dez anos, não era tranqüilo e pacífico engolir À Bout de Souffle. No meio de uma polêmica de entendidos, cujo oscilação de opiniões dançava entre os vaticímos de alta importância ou alta marotagem, o público mantinha as salas vazias, quase não tomando conhecimento do assunto. Era uma obra “difícil”: aliás, o novo sempre foi difícil. Uma crítica de esquerda, preocupada com o engajamento político da arte, amiúde esquecendo que o rótulo deturpa a criação, não perdeu tempo em classificar À Bout de Souffle, como um filme fascista – serie uma espécie de panegírico da delação. É só constatar o que, por exemplo, se escrevia em revistas, como Positif, com o eco subdesenvolvido nestas plagas. Hoje, ninguém mais pode acusar Godard de fascista, com uma radicalidade criativa, rumo, inclusive, à estava zero do filme marginal, como uma tendência político dialética cada vez mais frisante, pelo menos a partir de La Chinoise. Muito menos pelas suas atitudes vitais, como a carta que escreveu ao então ministro André Malraux, em virtude da censura imposta a La Religieuse, de Rivette, como sua participação no movimento de maio, na luta pela permanência de Langlois à frente da Cinemateca Francesa, enfim, pelo abandono dos grandes centros de produção, em plena fama, a fim de tornar-se um outsider, inimigo do establishment.
Hoje, repetimos, é fácil exclamar Godard, em tom de aprovação, nos bares de Ipanema ou na porta do Paissandu. Mesmo porque, muito de sua sintaxe inovadora já está presente na linguagem pacífica dos filmes comerciais ou, voltando a Ipanema, em muito que fez nosso cinema novo em sua arrancada. Influência saudável, discernida desde Os Cafajestes, de Rui Guerra, ou, pelo menos, na montagem da cena em que Antônio das Mortes metralha a multidão, em Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha. Isto, só para ficarmos em dois filmes iniciais e básicos do movimento aqui no Brasil.
Na época de seu lançamento, no entanto, mesmo para a maioria da crítica, não era fácil denotar a inauguração de uma linguagem que, em Godard, se operava numa estrutura fenomenológica de metacinema, enquanto em Resnais Marienbad, Hiroshima, numa estrutura racional-mallarmaica. Acossado foi um filme inaugural de nova linguagem, especialmente em dois pontos: montagem e comportamento do ator. No primeiro caso, além de explodir com regras de campo e contracampo, realizava um corte dentro do próprio take, repetindo o mesmo plano de modo stacatto, forjando diversos efeitos de ritmo e envolvimento do espectador. No segundo, rompeu com o primado do personagem pré-conceitual, isto é, já dado como ser previamente definido ao público, em favor do estar fenomenológico do ator, ou seja, conferindo à conduta humana um transe dinâmico e dialético, totalmente antiliterário. O filme deixava de ser cristalização de uma experiência antes mentalizada; era a própria experiência. E por isso, Godard também meditava sobre o cinema dentro do contexto de cada fita.
Essa a importância histórica de um filme, que, agora, já pode ir ocupando seu lugar privilegiado nos museus.
Correio da Manhã
01/04/1971