A época atual caracteriza o processo do cinema dentro de uma etapa peculiar. O experimentalismo, em lugar de haver permanecido dentro de uma cronologia sistemática, eclode aqui e ali, guerrilha de surpresa, sem maiores preâmbulos. Não é preciso remeter aos países sem grande indústria, sem grandes centros de produção; dos próprios estúdios hollywoodianos, jorram os nomes de diretores desconhecidos, comandando produções A (ainda não as superproduções, mas parece, pelo visto, que se chegará lá). Antes, eram obrigados a ensaiar nas produções B – há pouco mais de dez anos, Godard, no começo de sua carreira esfuziante, dedicava À Boute de Souffle à Monogram Pictures, especialistas em filmezinhos baratos, mas, muitas vezes, com fumaças pretensiosas. Cineastas – hoje consagrados – como Kubrick, Losey, Nicholas Ray – iniciaram-se assim, modestamente, quase incógnitos, apenas reconhecidos por alguns críticos.
O estouro dos “cinemas novos” em vários países (Brasil, Tcheco-Eslováquia, Iugoslávia, Argentina, Canadá, Bélgica, França), além da contestação política das gerações mais novas, trouxe, em seu bojo, o experimentalismo delirante. Descompromisso com a linguagem oficial, a gramática estética de campo & contracampo, à retórica das fusões, fade-ins & fade-outs, a lógica linear, mesmo aquela que absorvia o flash-back –chute para todos os lados. Ao contrário da literatura e das demais artes em geral, o experimentalismo não advém dos mais capacitados, mais equipados (e o cinema, mais do que qualquer outra, se consiste numa forma de criação em equipe humana e de aparelhos) –, vem dos mais modestos tecnicamente. Nem se trata de um paradoxo; a resposta é simples, no momento em que ninguém ignora o investimento industrial também pressupõe a rentabilidade, retorno de capitais, comércio. Fenômenos esparsos, no âmbito da grande produção industrial, como Eisenstein ou Orson Welles (ao estourar, via RKO, com Cidadão Kane) foram substituídos pela freqüência especulativa dos cinemas novos. O crítico, para não ficar, usando a expressão de Ezra Pound, “out of key with his time”, é obrigado a sair das grandes salas lançadoras e varejas os pequenos poeiras, as cinematecas, o underground, os festivais. Aí, dia a dia, inventa-se uma bossa, uma idéia de choque. Fruto da contradição: na medida em que a TV ataca, envolve o público em casa, desestimula muitos dos grandes investimentos no filme, existem condições, até sob estimulo oficial, para que o cineasta jovem se exercite, faça sua escrevivência com a câmara. No Brasil, por exemplo, aí esta o Instituto Nacional do Cinema. Então, o menor compromisso da pequena produção, onde não se aguardam lucros, faculta o descompromisso comercial. Nunca a estrutura do filme, assim, foi tão buleversada em tão pouco tempo como nesta última década de 1960. Basta – para ficarmos na produção quase clandestina – pensar no que fizeram Godard ou Renais. Ou no que pôde, contraditóriamente, na alta administração, fazer o ainda moço Stanley Kubrick, com 2001: Uma Odisséia no Espaço, em cinerama, a maior fita da história do cinema, onde questões da maior relevância epistemológica foram trazidos ao nível do consumo comercial. A era tecnológica oferece as suas contradições devido ao embasamento econômico-social. O cinema, que já não é arte (de artesanato, corpo a corpo com a obra) e, sim, criação industrial, oscila com elas. Marca etapas velozes de invenção e, agora, cai no ponto de interrogação sobre qual será o seu leito definido. Talvez seja melhor que não o possua: enquanto houver dúvidas, estaremos livres de dogmas.
Correio da Manhã
11/01/1970