Laranja Mecânica (A Clockwork Orange) é o nono longa-metragem de Stanley Kubrick. Data de 1971, mas chega às nossas telas sete anos depois, graças à proibição branca de certas autoridades, que possivelmente se retrataram em seu contexto. Em suma, tomamos convecimento dessa obra após o 10.º filme, Barry Lyndon.
Em matéria de impacto e efeitos cinematográficos, sete anos, às vezes, representa algo ponderável no sentido de alterar a nossa perspectiva de determinada fita dentro do processo. E, principalmente, em se tratando de Kubrick, que apresenta na sucessão de seus filmes uma espécie de fluxo de ciclagens e reciclagens na especulação sobre a índole da humanidade. No Dr Fantástico, o homem tem a bomba e, lá das alturas, prepara-se para a autodestruição. Em 2001: Uma Odisséia no Espaço, já está na Lua, vai para as galáxias e irá se transformar em novo ser através do choque cultural; é o feto cósmico do desfecho.
Agora, na Laranja Mecânica, voltamos à Terra. Mas que Terra? Um planeta onde os habitantes parecem necessitar rever com urgência aquele monolito que despertou para a inteligência e para a descoberta do instrumento aqueles nossos antecessores, os primatas de 2001. O alheamento à sensibilidade (e, por isto mesmo, as tonalidades da fotografia de John Alcott são predominantemenbe frias) só é contraponto pelo ballet de violência - somente esta última, de modo selvagem, é capaz de gerar a confraternização. O próprio diretor, no entanto, procura frisar que se trata de uma violência estilizada, ou seja, não tende a desfechar efeito catártico. Estamos diante de um ritual mais próximo do fantástico, onde se pretende elaborar uma parábola que remete aquela especulação sobre as transformações da índole humana.
A violêncta, na prtmeira parte do filme, é física; na segunda, passa a ser primordialmente moral, intelectual, com exceção dos trechos em que Alex faz uma pequena via crucis, apanhando das vítimas de outrora. Não há um personagem sensível, vamos dizer positivo, com a excecão do padre que invoca o livre arbítrio. E, para Alexander Walker, Laranja Mecânica representa o mais tenebroso dos medos de Kubrick, não o modo do morticínio acidental causado pela bomba nuclear (Dr Fantástico), nem mesmo o medo do que nos espera no universo desconhecido (2001), mas o medo nítido e atual da rendição da identidade do homem à tirania de outros homens. E, pode-se acrescentar: ou o delírio do individualismo através da deturpação feroz do prazer, numa sociedade dopada pela tecnologia em transe de alienação, ou o emasculamento de qualquer prazer em decorrência daquela perda de identidade, em consequência, da vontade que nos fazia humanos.
Desnecessário reiterar o know-how de Kubrick e sua equipe naquilo que é básico e razão de ser do cinema: ritmo, imagens, cortes, movimentos de camera, etc. Vale, sim, registrar o última plá da Censura, que colocou bolinhas pretas sobre as pessoas despidas. Seria cômico, se já não fosse um generoso rasgo de autocrítica. A Censura atribitiu a si própria aquilo que sempre mereceu: bola preta.
Jornal do Brasil
08/09/1978