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Cinema 64

O ano de 1964, no tocante às estréias registradas no Rio de Janeiro, foi um dos mais ricos. Serviu, inclusive, para corroborar uma tese nossa, a respeito do verdadeiro desligamento que, agora, opera-se, concreta e gradualmente entre cinema e literatura. Antigamente, ainda poderíamos acreditar no velho refrão de gênero por excelência, aplicado ao western. Hoje vemos que tal apenas justificava um fator puramente externo ao cinema, isto é, os tiros, cavalgadas e correrias ensejam maior dinamismo de câmera e cortes no contar uma história. Mas o mal do cinema estava justamente nesse simples contar bem a história. Ora, a história pode ser um leit motiv, um acidente dentro do filme ou, mesmo, nem existir. As experiências modernas vem demonstrando que, ou se toma o espetáculo como a própria e puta evidência significante do filme, ou então os seus elementos serão agenciados em uma técnica da descoberta de relação e virtualidades, como a própria experiência que se faz (na hora, filmando), a emitir instigações ao pensativo. Mas essas instigações não apelam ao raciocínio discursivo: inauguram induções, propiciadas pelo instrumento fílmico que ainda é dos mais ricos e complexos. Temos, assim, a objetividade total, em contraposição a um velho e desgastado processo alusivo, à base dos nexos simbólicos afins à tradição literária e teatral. E a descoberta daquelas relações e virtualidades irá, cedo ou tarde, influir nas complexas técnicas de administração peculiares à sétima arte.
É muito perigoso, ou mesmo desnecessário, forjar uma classificação de gêneros. Se a formos consumar, no entanto, dada as características formativas do filme, não seria o western, mas, sim, o thriller o gênero por excelência pois cria um tipo de emoção que só os meios do cinema poderiam proporcionar. Todavia, a demonstrar que essa convenção dos gêneros é inútil, encontramos raramente um thriller entre as maiores obras na história cinematográfica.
Já o princípio da administração explica porque, ao se rever velhas obras, na enxurrada de reprises que vem ocorrendo, algumas fitas, tidas outrora como comerciais, recreativas ou superficiais, como o caso dos cine-operatas Maytime, The Great Waltz, Naught Marietta ou The Merry Widow, revelam-se trinta anos depois como obras-primas ou pujantes espetáculos, enquanto, por exemplo, alguns ditos clássicos de Capra tornam-se insignificantes ou O Delator de Ford, é fulminante remetido para a esfera museológica. Daremos ao termo espetáculo a sua carga semântica, mais ampla e profunda e não o tomaremos como um sinônimo de recreação ou entretenimento. O espetáculo é a evidência de poderio técnico do cinema bem administrado em função de uma vontade estética. E essa vontade estética nada tem a ver com os anelos livrescos, com os grandes temas trazidos no bolso do colete, nem com as abstrações que envolvem as reivindicações sociais, econômicas, morais etc. O cinema também corresponde a um dos instrumentos que, graças à comunicação universal e à catarse coletiva, permitem evidenciar e até auxiliar a acionar a decadência do que se denomina civilização cristã, em favor de uma espécie neo-paganismo, condicionado pela máquina – o poderio de comunicar novas informações da segunda revolução industrial. O fetichismo renasce e substitui os dogmas oficiais da religião. O amoralismo, como atitude dialética numa fenomenologia de vivencias, impõe-se em contraposição à ridículo dualidade mora x imoral. Os problemas de consciência atravessam o crivo de outras especulações que refazem o princípio da responsabilidade individual.
Tudo isto, explícito um implícito, está no cinema moderno, é o cinema moderno. E, sob esse ponto de vista, da informação estética, condicionada pelo espetáculo (uma ética da administração que conduz a uma ética dialética e, não, à hierarquização de valores), que estabelecemos a tradicional lista dos dez melhores filmes do ano, seguida por referência a outras posições de maior ou menor interesse (grupo A ou grupo B) estreadas entre nós no ano passado.

OS DEZ MELHORES

1º) Viver a Vida (Vivre sa Vie) de Jean-Luc Godard
Corroborando a hegemonia criativa da nouvelle vague e sua evolução constante, Godard nos dá um dos filmes-marco do cinema, junto com L’Année Derniére à Marienvad, Jules et Jim e Hiroshima, Mon Amour, um dos maiores dos últimos tempos. Atinge o cineasta à objetividade total, dentro da dialética documentário-ficção, uma das chaves estruturais do processo fílmico atual e que faz a sétima-arte penetrar camadas de especulações indutivas, antes completamente despercebidas. Filmar é a experiência, a própria realidade autônoma, desligada do velho princípio de relatar algo já filtrado conceitualmente no pensamento. Sendo inteiramente anti-literário, Godard documente trechos literários (Por - O Retrato Oval), faz a protagonista entrevistar inadvertidamente um filósofo da linguagem (Brice Perain). Insere trechos de um clássico do cinema (La Pession de Jeanne D’Arc, de Dreyer), apresenta um documentário técnico e estatístico sobre o meretrício em Paris e consuma uma espécie de autobiografia cinematográfica, sua e da sua mulher, Ana Karina, também atriz e meretriz dentro da atriz. O cinema e/ ou a vida. Viver a vida, vivendo o cinema.

2º) Os Reis do Iê Iê Iê (A Hard day’s night) de Richard Lester
Os Beatles invadem o cinema com uma explosão de estesia. A estesia também moto-visual e sonora que a apóia no desembaraço, na soltura e descompromisso da câmera em tão-somente documentar um dia e meio da vida dos artistas, abordados por uma geração ululante de admiradores, enquadrados pelos empresários e gerentes, mas nunca enquadrados existencialmente. E um filme amoral, porque é puro. Qual o sexo dos beatles? O sexo de uma nova geração de uma nova civilização. E o novo diretor Richard Lester, apreendendo o espírito da nova conjuntura, traduz uma das maiores revelações nos últimos anos. Imprimiu um ritmo compactamente poderoso às seqüência, tanto na chanchada que lembra um pouco os irmãos Marx, no humor agudo de certos diálogos, na fixação do non-sense ou conduzindo, seja a euforia das multidões, ou a ambivalência espacial da inúmeras televisões ligadas dentro de uma imagem filmada. A seqüência em que os Beatles descem a estocada de incêndio e perfazem um ballet de libertação cantado na amplitude do prado é antológica, como antológicos são os créditos finais da fita. Também fabulosa a fotografia de Gilbert Taylor.

3º) Dr Fantástico (Dr Strangelove) de Stanley Kubrick
Kubrick soube não decepcionar aqueles que, desde Killer’s Kiss e The Killing vislumbraram um talento a prometer muito. Fez a seguir uma obra marcante, Paths of Glory, e após, entrando nas grandes produções, conseguiu forjar dois espetáculos de alta qualidade, como Spartacus e Lolita. Agora vem o Dr Fantástico engolindo todos os seus predecessores de um gênero que começa a se espraiar: o politics-fiction. Não há só a ironia sobre um mundo a espada de dámocles da bomba atômica. Há uma farsa agressiva e uma caricatura brutal, tudo sob um ritmo dos mais instigantes. Gozação desabusada da inteligência militar, da política da guerra fria e da alienação dos meios eletrônicos de comunicação, à base de siglas e códigos. Inesquecível a cena em que o major-piloto, com o chapelão de vaqueiro, desce espaço abaixo montado na bomba. A mesma bomba que talvez salve o universo terrestre, numa bela eclosão de cogumelos florais – desfecho de um filme fascinante e extremamente inteligente.

3º) As Aventuras de Tom Jonas (Tom Jones) de Tony Richardson
A filmagem do clássico de Fielding, mediante uma obra de extraordinária sensibilidade de plástica ambiental. A direção de Richardson (em sua maior fita) entrosada com um décor magistral e um rara beleza de imagens. O espírito de uma época, captado com toda a pujança das virtualidades do espetáculo cinematográfico. A sadia degeneração dos prazeres imediatos – o comer em todas suas implicações gastronômicas e amorosas. É ver a cena da balbúrdia na estalagem, onde se aplicam os recursos do belho Mack Sennet e onde também numa passagem notável, Tom e a mulher comem lentamente o jantar entrecomendo-se com os olhos. Ou a seqüência magistral da caça à raposa. Coroando o êxito de Tom Jones a adequação precisa, física e psicológica, de todos os intérpretes aos seus respectivos papéis.

4º) O Professor Aloprado (The Nutty Professor), de Jerry Lewis
The Nutty Professor confirma aquilo que os filmes anteriores, por ele dirigidos, especialmente The Ladies Man, já anunciavam: Jerry Lewis é o maior comediógrafo do cinema americano, quiça do mundial, já que Jacques Tati é um cineasta bissexto. Essa dualidade chaplinesca diretor-ator cai-lhe como uma luva. Sob um magnífico décor, e cores deslumbrantes, Jerry Lewis, a seu modo, uma inversão episódica da história de Dr Jekyll e Mr. Hide. O professor & Buddy Love, Jekyll Lewis & Jerry Hide, uma sátira a alguns mitos da juventude norte-america, com um extraordinário tour de force, não só de Jarry ator, em papel duplo, mas de Jerry diretor, construindo seqüências notáveis, principalmente aquela de horror, com a transformação do monstro em galã, com o efeito de surpresa muito bem sacado.

6º) Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha
É, em nossa opinião, o melhor filme brasileiro feito até hoje. Glauber Rocha, após uma primeira fita, Barraventos, algo apagada e desigual, dá um pujante salta qualitativo, com uma obra que é invenção, quase de ponta a ponta. As influências podem ser muitas, mas todas, bem assimiladas, funcionalmente adaptadas à sensibilidade de quem as incorpora em seu fluxo expressivo. A alienação mística, no cangaço euclidiano e com algumas marcações do teatro isabelino. Seqüencias de surpreendente ousadia criativa. Um dos pontos mais altos entre as improvisações formativas, típicas do temperamento brasileiro. E, antes de tudo, uma afirmação humanista – do homem que é quem, em si mesmo, gera o germe de deus e do diabo.

7º) O Grito (Il Grido), de Michelangelo Antonioni
Chega-nos Il Grito com muitos anos de atraso e, isto, foi um handcap poderoso, pois o cinema anda muito depressa. Situado, aqui, em 1964, não seria fácil surgir no topo de uma lista de melhores, como certamente estaria, caso fosse lançado alguns anos antes. Trata-se do primeiro filme correspondente à grande fase da formulação da angústia e tédio, típica de Antonioni. Depois, este diretor foi indo mais longe, paulatinamente, com L’Avventura, La Note e L’Eclise. Mesmo assim, ainda conserva um elevado nível de densidade, uma unidade plástica admirável, com eficaz utilização da profundidade de campo. O casal – le couple – em cheque pela primeira vez, sob o olho torturado e esmiuçante de um grande artista. E ainda a ressaltar a ótima interpretação de Steve Cichran e o acompanhamento musical de Giovani Fusco.

9º) Amor à Toda Velocidade (Love in Las Vegas), de George Sidney
Sidney é um dos grandes técnicos da administração, da compreensão do moderno, da assimilação dinâmica de uma estesia imediata. Seu Scaramouche vai resistindo ao tempo, como um exemplo poderoso. Mas Love in Las Vegas ainda é um dos impactos mais frontais. A festa de formas e de cores. O erotismo, quase em toada eletrônica – aquela toada sadia do cinema despretensioso. A presença de Ann Margret, que ainda estava sendo descascada em Bye Bye, Birdie, e que, agora, é uma agressiva feminilidade. De uma desinibição desabusada. Seqüências de dança simplesmente notáveis. E Elvis Presley, além de cantar, dirige automóveis de corrida, numa disputa em ritmo cinematográfico francamente antológico.

Correio da Manhã
01/01/1965

 
Uma Odisséia de Kubrick
Revista Leitura 30/11/-1

As férias de M. Hulot
Jornal do Brasil 17/02/1957

Irgmar Bergman II
Jornal do Brasil 24/02/1957

Ingmar Bergman
Jornal do Brasil 03/03/1957

O tempo e o espaço do cinema
Jornal do Brasil 03/03/1957

Ingmar Bergman - IV
Jornal do Brasil 17/03/1957

Robson-Hitchcock
Jornal do Brasil 24/03/1957

Ingmar Bergman - V
Jornal do Brasil 24/03/1957

Ingmar Bergman - VI (conclusão)
Jornal do Brasil 31/03/1957

Cinema japonês - Os sete samurais
Jornal do Brasil 07/04/1957

Julien Duvivier
Jornal do Brasil 21/04/1957

Rua da esperança
Jornal do Brasil 05/05/1957

A trajetória de Aldrich
Jornal do Brasil 12/05/1957

Um ianque na Escócia / Rasputin / Trapézio / Alessandro Blasetti
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