Ainda no cartaz, agora em 70 milímetros, 2001: Uma Odisséia no Espaço, talvez para espanto daqueles que falam em excesso de técnica, de gigantismo, capitalismo & quejandos. Há um erro palmar: nenhum filme (como, de resto, qualquer obra de arte ou o mero artesanato utilitário) prescinde de técnica, desde Godard, que faz a sua revolução cultural e sintática dentro e átravés do cinema, até Kubrik ou a Metro. O que se pode dissertar é sobre a natureza e quantidade de materiais, a partir dos quais o cineasta opera a fim de formular a sua informação estética via filme. Muitos cineastas, geralmente devido à impossibilidade de acesso a um maior poderio industrial, são obrigados a cair no corre-corre de câmara na mão. Não é o caso de Godard, que fêz claramente a sua opção. Hoje em dia, com o cartaz que possui, qualquer produtor francês gostaria de vê-lo domesticado, "dirigindo" uma fita comercial de alto coturno, tipo Viver por Viver. O seu problema é o de retôrno a uma quase estaca zero industrial, a fim de atuar sôbre a própria ontologia do cinema e sôbre o próprio condicionamento social. E, com isso, já operou algo importante: liquidar a obrigatoriedade do primado da imagem pictórica, como base estética do filme.
Esse jejum de materiais não é, contudo, a condição sine qua non do cinema-arte, do cinema-criação. Trata-se apenas de estratégia eventual, estipulada em função de conferir uma nova abertura técnica e dialética à linguagem moto-sonora-visual. Dai para diante, renunciar ao científico-industrial, com relação a isso, seria insensatez. Pois a se continuar na batida romantica da antitécnica, daqui há anos, quando um computador eletrônico estiver dirigindo um filme (seja ou não um outro Hal oq Hel), assim como já produz poemas, essa atitude lembrará a dos macacos de Kubrick, apenas com uma diferença, isto é, irritados com o monólilo.
A técnica é o b-a-bá. Sem ela inexiste concretamente aquilo que se convenciona denominar conteúdo de uma obra; ficara existindo tão-somente a vontade subjetiva de determinados críticos ou espectadores de que fôsse exprimido o seu couteúdo - o que, em última instância é a eterna negação da atitude criativa e da atitude realista, face ao desenvolvimento dos recursos materiais adaptáveis a determinada linguagem. A técnica consiste em efetuar, ao máximo, uma apropriação funcional dos materiais utilizados, que no campo virtual, transformar-se-ão nos elementos de uma dada informação. Talvez, no âmbito cinematográfico, inexista melhor exemplo recente da desigualdade de noção da apropriação técnica do que o Édipo-Rei, do sempre bem intencionado Pasolini. As fraquezas da fita não são sinônimo de "pobreza" (em matéria de "pobreza", êle acertou alto com o seu Evangelho, Segundo São Mateus), mas da falta de nexo estrural à parcimônia dos materiais utiIizados.
Mas há, enfim, uma constatação evidente: quanto maior o poderio material à disposição, maiores as possibilidades de poderio técnico e, portanto, criativo. E é esse o exemplo conferido por 2001, um marco definitivo na história do cinema, porque representa o mais elevado índice de apropriação técnica a partir de um dos mais elevados índices de riqueza de recursos à mão de um cineasta e sua equipe . A gratuidade essencial que sempre caracterizou tôda obra de arte, e também o filme, como criação industrial, ganha latitudes inéditas. E isto porque Kubrick engajou-se certo, isto é, engajou-se primeiro na técnica para, a partir dela, sob o ponto de vista filosófico, especular sobre a mise-en-situation do homem e da máquina e do próprio conceito de Deus em si, diante da perspectiva de uma nova realidade que fatalmente a humanidade enfrentará, se resistir a si mesma, quer dizer, às bombas; napalm & outras preciosidades.
Correio da Manhã
04/10/1968