A notícia chegou como uma bomba: Godard no hospício! Poucos dias depois, a segunda notícia, tranquilizadora: Godard deixou o hospício, tão refeito que já estava pronto para continuar as suas filmagens dos diálogos entre Lenine e Rosa Luxemburgo.
Os inimigos de JLG poderão se deleitar com a anedota ou dizer que o ingresso no hospício, embora merecido, era, com tôda a loucura, um simples lance promocional, mais uma concessão ao escândalo. Cremos ser inócua a discussão. Tudo que fervilha em Godard pode ser a sua própria crise em relação àquilo que mais demonstrou amar - o cinema -, como crítico e cineasta.
A partir de um dado momento, a preocupação com a metalinguagem invadiu o cinema – muito mais depressa do que se poderia imaginar, diante de uma forma de criação industrial, tão poderosa e evolutiva em seus recursos. Em outras áreas de criação, há bom tempo, desde mesmo fins do século passado, a crise se manifestara (a crise do instrumento, que, no entanto, não se reporta ao filme): Mallarmé fêz o poema sôbre o poema, Joyce fêz a prosa sôbre a linguagem, Mondrian fêz o quadro sôbre a pintura, e daí por diante. O filme sôbre o filme chegou com a nouvuelle vague, principalmente com Godard: A meditação sôbre a natureza e efeitos de seu ofício já vinha desde Une Femme est une Femme (saudosismo dos metromusicais), Viver a Vida (documentação de trecho de Dreyer), a protagonista em três planos: personagem, atriz e mulher do diretor, Le Mépris (a presença física de Fritz Lang, fazendo o papel do que êle é na vida: diretor de cinema) e fita a fita foi se intensificando, mormente com a eclosão de Pierrot le Fou. A câmara de Godard entrevistava homens de cinema, citava, imitava o estilo dêles, sua visão do mundo, de maneira crítica. É inegável o resultado instigante obtido pelo inventor do metacinema, que, também, inseria todo um mundo literário-estético (Edgard Allan Poe, Mozart, Lewis Carrol, Brecht), em sua radiografia pessoal da decadência do Ocidente e respectivo paraíso cultural perdido. La Chinoise foi o marco de sua revolução cultural e sua maior e mais aberta opção política. Mas, paradoxo implacável, no momento em que o seu vanguardismo sentiu-se obrigado à participação, a crise Godard parece haver iniciado o salto no precipício. Week-End foi o seu último grande filme, aliás o maior de todos em sua obra e um dos grandes da história do cinema. One Plus One e Le Gai Savoir iniciam uma derrocada. Le Gai Savoir, esfôrço de tese sôbre a inauguração de uma nova linguagem, em decorrência das necessidades da revolução cultural, não teve o efeito desejado, apesar dos morceaux de bravoure. No próprio e pra frente Festival de Berlim, do ano passado, onde foi exibido, encontrou recepção algo fria, mesmo de público jovem, mesmo um ano depois dos acontecimentos de maio, quando o cineasta havia tomado parte ativa no protesto e na luta.
E o cinema corda em paralelo, chegava a 2001. Meditar sôbre o instrumento foi útil e rico, mas tentar empobrecê-lo e marginalizá-lo, sob pretextos ideológicos, não foi funcional. Mesmo porque teorizar e propugnar por um cinema marginal perde o sentido, se pensarmos que se o marginalismo vira sistema, passará a ser então marginal aquilo que não o era antes...
A importância de Godard foi aquela de, como inventor, dar novos elementos à linguagem do filme, levando, inclusive, ao ponto máximo a dialética documentário X ficção. Mas, elemento, como algo de virtual, depende do material, da matéria-prima, da tecnologia. Muitos êmulos de Godard procuram, amiúde (e, até, para esconder a incapacidade ou falta de idéias), levar suas descobertas às consequências da castração do instrumento, em vez do desenvolvimento. Limitando-se o instrumento, limita-se o efeito: menos impacto, menos espetáculo. O maior grau de possibilidades de informação estética está condicionado ao de maiores possibilidades do instrumento. O resto é o declive com o carro adiante dos bois, mesmo que Godard agora, por uma espécie de ilusória mauvaise conscience, esteja dentro dêle.
Correio da Manhã
08/10/1970