É comum, hoje em dia, o que se entende por metalinguagem, poema sôbre o poema, arte sôbre a arte (não nos referimos, aqui, à arte pela arte – art for art's sake). Os exemplos são inúmeros e, desde Godard em especial, também se localizam, amiúde; na área do cinema. Ainda no século passado, alguns raros, como Poe ou Mallarmé, enxergaram depressa o problema imediato que adviria - a crise do artesanato desfechada pela segunda revolução industrial - e fizeram obras de antecipação; ou metacriacão.
Depois: o negócio, à partir da década de 1960, ficou óbvio demais. A crise está presente, aguda, algumas modalidades de linguagem entraram em impasse e nada mais natural que, à partir disto, metalinguisticamente, alguns criadores passassem a meditar sôbre a sua própria forma de linguagem, à partir da realidade material dos instrumentos disponíveis. Muita coisa que não era arte, passou a ser arte; muita coisa que era arte tornou-se impraticável. Existe, inclusive, a tendência de se ir à raiz do gôsto popular e procurar, à partir daí, uma razão de ser de maior projeção ética ou estética.
No cinema, essa inquietação (ainda não chega a ser crise), transformou-se em lugar comum, apesar de ser o filme o mais poderoso meio de expressão. No cinema brasileiro, deu-se também o fenômeno com intensidade. Metacinema, ou contracinema - contracultura . Aí está em cartaz, sob a roupagem de neofolhetim escrachado, As Escandalosas, de Miguel Borges. Apesar de, segundoconsta, haverem os produtores alteradoo que seria a intencionalidade estrutural da fita, apesar da intromissão truculenta,também segundo consta, da censura,comprova-se nitidamente a busca(no geral, mal sucedida) da metalinguagem.
A intencionalidade pode começar aser digerida pela má qualidade da foto,a carência de continuidade, nenhum requintede décor e a desmistificação donu. Este último e evidente dado não é novidade. Começou com Rui Guerra, na longa e antológica cena de Norma Benguel na praia, perseguida pelo carro. Veio andando por aí, passou pelo morticínio de Miguel Faria, em Pecado Mortal, e está presente em Miguel Borges . Por isso, muitos observadores não entenderam o "mau gôsto" dos nus das escandalosas.
As Escandalosas é um falso filme de consumo, é tomado como mero pornofilme. O diretor quis ir mais longe. Mas não basta estar imbuído da metalinguagem para acertar a paulada no coelho, isto é, o lance da criação, que, apesar de tudo, meta ou não meta, está sempre em jôgo. São preciso idéias novas e poder de execução: idéias, como, por exemplo revelou Rui Guerra no cinema político, ou Rogério Sganzerla, na neochanchada. Miguel Borges não peca pela falta de idéias - apesar da "pobreza" do espetáculo, nota-se alguns enquadramentos instigantes, movimentos de câmara inesperados, sem falar no apanhado da cena final, a melhor coisa da fita. Mas, faltou-lhe o modo de aplicá-las ou "aquêle algo mais", que tiraria As Escandalosas do fôsso onde, premeditadamente, se colocou ,
De qualquer forma, vale o registro sôbre mais um exemplo de tendência do cinema nacional - o contracinema.
Correio da Manhã
28/03/1971