O cinema, como já notara Walter Benjamin (A Obra de Arte no Tempo de suas Técnicas de Reprodução), consiste no mais poderoso meio de expressão estético, porque já nasce, não do artesanato, mas da sua própria reprodutibilidade em massa. Ora, nesta era atual de término da "aura" do objeto único, na inedida em que a capacidade de reproduzir, documentar dinâmicamente, mais se desenvolve, o passado se torna uma presença progressiva e contingente. O foco da nostalgia algo cada vez mais concreto.
Se o passado é, assim, mais presente, também é natural que o filme volte sôbre si mesmo. Aí está, em exibição, Homem e Mulher Até Certo Ponto... (Myra Breckenridge ), onde saudosismo e automeditação do filme são texto e pretexto para uma fascinante cascata de formas e atuação sôbre a linguagem.
O diretor Michael Sarne já havia impressionado com Joana, uma realização também esfusiante em côres, formas, ritmos e descontração de estilo. Agora, com Myra Breckenridge, vai mais longe, num salto inegável de importância e profundidade - uma fita, que, na opinião de Décio Pignatari, logo abaixo de Uma Odisséia no Espaço, constitui a mais importante para o cinema nos últimos anos. Em linhas gerais, a história, baseada em obra do escritor Gore Vidal, já é bastante insólita, embora não possua função decisiva no nexo estrutural. Um homossexual resolve tornar-se mulher, mediante intervenção cirúrgica vazada em clima e visualidade surrealista. Transforma-se em Raquel Welch e segue para Hollywood, onde se instala na academia de atôres de um tio (John Huston), apresentando-se como mulher de si próprio, isto é, do sobrinho, e compelindo, por motivos de herança, o mesmo tio a aceitá-la como sócia do estabelecimento. Os alunos são todos invertidos, drogados, hippisádos . Raquel, lá, faz de tudo, infernizando as teorias do tio, inclusive, mediante um corretivo fálico, envergando biquíni com as côres da bandeira dos Estados Unidos, transtornando o único aluno que era "homem normal". Mas, quando tenta seduzir para o lesbianismo a única "ingênua", que era namorada de sua vítima, apaixona-se, sente uma espécie de nostalgia da masculinidade, é ou deixa-se atropelar e, no hospital, com nova operação, volta ao estado de homem. Em paralelo, o personagem vivido pela veterana Mae West, que também possuía uma escola, mas só para atôres, e, diariamente, leva os candidatos para a única prova que lhe interessa: a do leito. Sintomático notar que os únicos viris são os veteranos Huston e West. Féerie encantatória com abertura e fechamento do par em dança à la metromusical, o filme jamais se evola no lugar comum. O seu tema principal é o cinema em si e a interrogação sôbre a civilização pagã atual, acionados pelo saudosismo de Hollywood das décadas de 1930 e 1940. Esse saudosismo não é puramente alusivo: materializa-se num recurso instigante de linguagem que é o de glosar cada situação da fita com cenas de filmes do passado. Entram, aí, várias passagens de Laurel &. Hardy, o lance final do duelo da Marca do Zorro, George Sanders, em All About Eve, Alice Faye e John Payne cantando, Ronald Colman e Claudette Colbert, em Sob Duas Bandeiras, Marlene Dietrich, etc. E, numa das cenas musicais, Mae West canta, acompanhada por um conjunto de dançarinas em evolução à la Gold Diggers, ostentando imensas bananas, naturalmente fálicas. Um dos cunhos da popcultura matizando uma realização que é fragmento sintético da história e nostalgia do espetáculo fílmico, o qual, mais do que qualquer outro, o cinema de Hollwood sabe proporcionar. Pois qual é o sexo do amor em si?
Correio da Manhã
06/04/1971