O cinema, máquina do tempo. Fellini, como poucos, torna palpável a evidência. Satyricon talvez seja o primeiro filme que, além da reconstrução formal da época, nos dá a sensação pagã. Pasolini, com seu édipo-Rei; andou perto disto, mas se preocupou em modificar, por motivos políticos atuais, a passagem da Esfinge, assim como envidou fazer alusões psicanalíticas à formação do fascismo. Quem mais como Fellini? A sua fôrça em abrir êste universo de pureza do prazer fica exemplar na história do cinema, e através de um entrecho a refletir, em paralelo, com o onirismo psicadélico fundado no barroco típico do diretor, o horror da História, da memória, em imagens inesquecíveis. Não é preciso notar que o cineasta, deslocando-se ao passado pela primeira vez, alude nitidamente ao neopaganismo, a crise da civilização cristã na atualidade.
No desfêcho das Noites de Cabíria, após uma série de vicissitudes, o rosto da meretriz (Giulieta Masina, numa segunda edição da imortal Gelsomina) sorri para as pessoas na estrada. Foi o último rictus chaplinesco de Fellini, cristão atarantado com a falta e comunicabilidade e o início da viagem de uma geração ao delírio dionisíaco e contestatório. A Doce Vida, na verdade, já era o se primeiro Satyricon - a pureza perdida da menina loura em contraste com aquêle ser marinho que chega à praia. E a sua modernização de Edgar Allan Poe, na pequena obra-prima que é Tobby Dammitt, pode ser outra etapa não menos fantasmagórica da visão de Petrônio. Idem idem com relação ao onirismo de Oito e Meio ou Julieta dos Espíritos, a técnica da descontinuidade, da inconclusibilidade, para assinalar o castelo de cartas em que se transformou um sistema de valôres.
Satyricon: o cinema como agente dos mais poderosos da era da reprodução, amplia a imaginação e forja a memória de uma época. O que Winckelmann tentou concretizar com o mundo grego, Fellini o faz ao formular o amoralismo essencial do universo pagão, antes da virada humanística do cristianismo. E, isto, com uma técnica a elidir a estrutura clássica da narrativa, em favor de um captar horizontal de situações, sem hierarquia dramática, num painel ou mobile de cenas intencionalmente redundantes no espírito, cunhadas sob a admirável plasticidade da fotografia do mestre Giuseppe Rotunno. O descozido, o solavanco, o sincopado. Talvez não seja nada de tão espantoso, na época atual, se fizermos uma montagem de Dachau, Vietnam, Praga, Patiño, bôlsâ de valôres e outras delícias à sombra cristã.
Fellini, como ex-cristão ortodoxo, sabe das dúvidas e, melhor ainda, da derrocada de uma civilização com a máquina. Por isso, apoiou o maio de 68 na França, bem como espelha a perplexidade em sua obra. Uma grande e generosa perplexidade. Talvez suas fitas possam concorrer aos signos ou ícones murais, com que abre e fecha o ritual do Satyricon. Ele cria, embora indague a respeito da utilidade do artista, da mesma maneira que o seu personagem poeta. A diferença com as obras imediatamente anteriores, a partir de La Dolce Vita, reside na elisão dos recursos simbólicos. Tal elisão implica no distanciamento intencional; agora é tudo símbolo, ou melhor, alegoria, o espetáculo sobre uma espécie de espetáculo - anula-se a opção de significar qualquer coisa. É o documento. .
Talvez, como de hábito, a saída esteja na linguagem. Fellini, porém, oscila no trauma, ainda não procura, como outros na vanguarda. Está parado diante do barco do poeta, pintando com assombro aquele encantatório inerente à derrocada.
Correio da Manhã
09/06/1971