Um exemplo do filme bem administrado, ao nível do consumo e passatempo, é Waterloo, produção italo-soviética, com pitadas da bichesse britânica. Tudo é feito em função do espetáculo em si, do efeito, embora o burocracismo artesanal e a falta de imaginação, típicos de grande parte dos cineastas soviéticos. Numa realização, onde, ao contrário do anunciado, Napoleão é quem faz o papel de Rod Steiger, Christopher Plummer dá o charme a figura de Wellington e os canhões se encarregam do resto, a verdade e a reconstrução histórica obtêm o mínimo necessário de simpatia do know-how dos estúdios. Steiger, no campo de batalha, grita amiúde mais alto do que os tiros - o que, estranhamente, não inspirou o diretor a inverter o resultado da batalha. Verdade que, lá do outro lado, Plummer não dá bola ao vozeirão, sempre emitindo plumas e sorrisos de malícia, entrecortados, vez por outra, por um olhar tristonhamente bem pôsto nos momentos em que, os amigos, à sua volta, tombam com fendas no corpo, ao môlho das tintas especiais do estúdio. Ao fim, passeando pelos cadáveres, não resiste a um enunciado acaciano sôbre o mal de tôdas as guerras. Sorry, disgusting. Quanto· ao mais, ninguém entende porque, por duas ou três vêzes, o olhar arregalado de Steiger cobre todo o espaço da projeção em 70 milímetros (o filme não é de horror - ou, é?). Apenas evidencia o distanciamento alienado entre o cineasta e seu instrumento.
Com Queimada, de Gilo Pontecorvo, ocorre o contrário. A reconstrução histórica invoca ação e lugar fictícios, em função da alegoria. Estamos diante de uma obra a qual, com o devido pêjo diante do têrmo, poderia-se designar como "formalista". Isso é jargão preferencial nas invectivas dos estetas oficiais soviéticos ou de críticos que se intitulam "de esquerda" e fiscalizam o excesso de inteligência do próximo.
Mas, por que o formalismo? Por causa do artifício acadêmico que já envelhece a fita em cêrca de quarenta anos (pré-primórdios de Frank Capra & Cia) - o que, em matéria de cinema, convenha-se, invoca uma senilidade bíblica. Tudo está bem feito, bem vestidinho, bem encaixadinho. Bem filmadinho, bem coloridinho. Pretende-se uma obra política e, em decorrência, cada personagem já trás, como uma etiquêta coloda na testa, a abstração a que se refere no campo da luta de idéias. Enquanto se reprisa, aqui, A Bout de Souffle, que, exatamente, há mais de dez anos, através do estar fenomenológico, rompeu com o tratamento literário conferido ao personagem, livrando-o da condição de sêr pré-conceitual, o sr. Pontecorvo arruma tudo de nôvo, em favor da padronização de situações. O bem e o mal, colonial e o anticolonial, o prêto e o branco, o imperialismo e a guerrilha. Um rótulo para cada cara da ilha. Precisa de uma aula urgente com os vietcongs.
Uma ética muito limpinha, certinha, faz vibrar uma parte da crítica; parte dessa parte, sem o saber, menos preocupada com a saúde do cinema em si, do que em atender a reclamos à margem do objeto em exame. Marlon Brando, ao contrário de Rod Steiger, está calmo - apenas um tique aqui, outro ali.
Queimada, sem dúvida, é boa diversão; poderia até ter algumas canções para animar o entrecho. Mas querer que seja algo mais além disso é querer transformar a realidade do cinema em mera ficção. Ou será que, mais uma vez the show must go on
Correio da Manhã
17/06/1971