Na ala mais "pra frente" do cinema brasileiro, o filme sôbre o filme já, há muito, deixou de refletir especulação dialética ou ontológica a respeito da natureza da media, para ser, na maioria das vêzes, mera moda ou, se quiserem, "bossa". Se quiserem, mais ainda, "curtição", "na sua" ou "dêle", em suma, um breve e confuso piscapisca de fumaças intelectuais destinado a um público de pantalonas.
A influência de Godard, natural e arrasadora, chegou aqui e engoliu a praça. Se alguns, como Glauber e Sganzerla, souberam absorvê-la e dar um "algo mais" em matéria de formulação, outros sequer conseguem imitar a matriz. Godard, quando saiu da trincheira polêmica e renovadora da crítica, no Cahiers, e, a partir de A Bout de Souffle, atuando na linguagem, meditou sôbre o filme, possuía todo um background cultural que lhe permitia, inclusive, alterar funcionamente tôda uma tecnologia a qual desconhecia; a não ser pelos efeitos desfechados sôbre êle mesmo, como espectador. Dentro da arrancada básica da reestruturação do cinema moderno, a dialética documentário e ficção, consumou, pela vertente da contracultura, o que Resnais fêz, pela da própria cultura.
Em decorrência, nas filiais, o vale-tudo, a invasão de bárbaros. Chinelo nos pés, câmara nas mãos. Bate-papo em Ipanema, bate-bôca na Imprensa. Financiamentos oficiais, cinemas às môscas. O resto é o resto.
Os bons filmes da fase inicial de nossa renovação - Deus e o Diabo na Terra do Sol, Os Cafajestes, Os Fuzis, O Pagador de Promessas, Vidas Sêcas e alguns outros - não se multiplicaram; O Bandido da Luz Vermelha, A Mulher de Todos, Macunaíma, Tôdas as Mulheres do Mundo, é pouco para matar a fome. Foi aí que a cafonice e o comercialismo primário renasceram das cinzas e ocuparam as bilheterias, tal como na época das chanchadas da Atlântica: Mazzaropi, Memórlás de um Glgolô, Tentação Nua & quejandos. Salvam-se algumas exceções da praxe, do espetáculo digno, tipo feijão-com-arroz, como Os Paqueras ou Quelé do Pajeú.
E O Capitão Bandeira Contra o Doutor Boura Brasil? “Entre les deux, mon coeur balance... " Balança, sim, irresistível, o pêndulo do sono. Caos referencial, arritmia, metacinema e, evidentemente, um pouquinho de nudismo porque ninguém é de ferro. As boas intenções foram declamadas pelos órgãos de divulgação afora: esquizofrenia, crítica ao superconsumo e ao ideal de segurança, perquirições a respeito dos caminhos e descaminhos do fazer cinema, crise de consciência com a destruição da razão, desfocamento ético na balbúrdia de valôres etc & etc.
E dai? Na modorra, além dos seios (alguns flácidos), a citação do estilo eufórico de Glauber Rocha, os atôres antifuncionalmente robotizados. Tudo em função também de uma novidade que já nasceu inútil. As côres, o cinemascope, alguns atôres caros, a boa foto de Afonso Beato, resultaram desnecessários - para tanto, bastava o orçamento de Júlio Bressane. É simpático ter dúvidas e fazer a filmagem da filmagem. Mas dúvidas sôbre o quê? Se a certeza a respeito de tudo pode levar a uma visão totalitária da cultura, a ausência da certeza não significa forçosamente o nada. É preciso propiciar um mínimo de conhecimento, sabendo que as formas de conhecimento identificam o relativismo dos meios ou "nada se perde, tudo se transforma". A velha história filosófica do rio. Ou do processo - como diz Whitehead (vale sempre repisar): "A permanência do infinito nas coisas finitas."
Em resumo: não é o filme sôbre o filme, mas o filme contra o filme.

Correio da Manhã
24/06/1971