Em entrevista concedida ao Cahiers du Cinéma, Roman Polanski abordou com bastante humor e lucidez algumas questões em tôrno do seu métier. Uma delas foi a questão do distanciamento entre autor e obra, com relação especialmente aos seus dois últimos filmes, A Dança dos Vampiros (The Fearless Vampire Killers, onde êle inclusive também compareceu como ator) e O Bebê de Rosemary (Rosemary's Baby). No primeiro citado (aliás, uma fita fascinante, um show de humor macabro de sátira burlesca, de hommage barrôca ao grotesco), Polanski estaria mais à vontade para realizá-lo devido à sua condição de ateu, de pessoa que não cultiva o sobrenatural. Haveria, assim, um distanciamento funcional, apesar da atração que a vampirologia oferece ao esteticismo. No caso de Rosemary's Baby, ocorreria então o contrário: apesar da atração esteticista pelo macabro, o distanciamento vivencial entre autor e obra poderia resultar numa frieza antifuncional para abordar um assunto que exigia suspense e emoção, um thriller cujo encadeamento pede, senão afeição, aferição mais íntima dos fenômenos paranormais. Mas, aí também, até por paradoxo, o esteticismo do diretor suplantou o distanciamento vivencial, levando-o a concretizar um filme tenso e fascinante. Polanski apaixonou-se pela história de Ira Levin, da qual fêz o roteiro para O Bebê de Rosemary, dizendo mesmo, na citada entrevista, que leu-a de uma só golfada. E, em suma, não era só o gôsto estético: evidenciando lucidez, caracterizou o seu ateísmo, não como uma colcha de certezas materiais ou materialistas (o que levaria a transformar o materialismo numa religião - e assim o é o materialismo ortodoxo, ou qualquer ortodoxia imutável), mas, sim, com uma superposição de dúvidas. E é essa superposição de dúvidas que justamente evita o mecanismo do culto ou o arranha-céu de dogmas. Ou, para arrematar: o impacto de um efeito de causa desconhecida, segundo o distanciamento adotado pelo ateísmo dialético, impede as duas radicalizações opostas a atitude do avestruz, do materialismo ortodoxo, ou o transe alucinatório e submisso, que, por exemplo, de acôrdo côm a lenda, atacou aquêles índios quando viram Caramuru atirar com arma de fogo.
É assim, sob o prisma de tal distanciamento, que Rosemary's Baby exige o comportamento ·do espectador, variando, é claro, a catarse ou a tensão, com essa capacidade de distanciamento e a formação de cada um. Estamos diante, sem dúvida, de uma obra de impacto, dentro daquilo que o cinema, como criação industrial do espetáculo, pode ser, como gerador de grande divertissement. A fita não pretende ensinar, nem impor qualquer modalidade de mensagem humanista ou filosófica. Espetáculo para ser vivido no máximo possível e pouco meditado.
Fazendo-se uma comparação em têrmos de thriller (na verdade, o gênero essencialmente cinematográfico), o Bebê de Rosemary pode ser considerado como um admirável Hitchcock menor - para citarmos o inventor e, ao mesmo tempo, mestre do assunto. Polanski extrai ótima interpretação, e também caracterização física, como a grávida magra, de Mia Farrow, assim como confere a ambiguidade desejada ao personagem desempenhado pelo cineasta John Cassavets, além de forjar tipos magistrais através do supporting-cast, equipado de bons atôres, Ruth Gordon, Sidney Blackmer, Maurice Evans ou Ralph Bellamy - com a ressalva necessária aos dois primeiros mencionados, criando as figuras inesquecíveis do casal Castevet. Em paralelo, forja uma sequência antológica - aquela pseudo-onfrica vivida por Rosemary. E não há dúvida de que o repúdio ao happy-ending e a crueza dramática de diversas cenas dignificam o espetáculo, até no sentido de reafirmar a existência de algo mais no além do além.
A desigualdade no concentrar da intensificação do thriller é o ponto falho da direção. O período de preparação para o clímax fica algo redundante e, posteriormente, o acúmulo de revelações gera uma espécie de anticlímax ou dissolução de expectativas, impedindo o máximo de efeito desejado. Apesar disso, ficamos frente a uma fita apaixonante.
Correio da Manhã
10/04/1969