A demissão surpreendente de Henri Langlois da Cinemateca Francesa movimentou o mundo cinematográfico, não só naquele país, mas em quase todos os outros. Em 1936, com 22 anos de idade, o jovem Langlois começa a caça aos arquivos para guardar filmes, pois o cinema forçosamente viria a ter um passado necessário de ser transmitido in totum às gerações futuras, como elemento primordial da história e da cultura. É dêsse modo que Françoise Giroud desenvolve as suas considerações biográficas a respeito do affaire Langlois, no L'Express da 19-25 de fevereiro. Continua FG dizendo que, em companhia de Georges Franju (hoje, também diretor de cinema) e Jean Mitry (um dos principais teóricos da sétima-arte na França) o papillon pachyderme colecionava os rôlos e latas. Langlois guardava bobinas até debaixo da cama – e assim proseguiu durante a ocupação alemã, e então, com o advento da Libertação de Paris, a Cinemateca foi reconhecida como associação de utilidade pública. Ficou sendo a maior do mundo no gênero, graças ao esfôrço e prestígio pessoal de Langlois. Basta lembrar que, como assinala a mesma jornalista, enquanto possui entre 50 e 60 mil filmes, a União Soviética não tem mais do que 15 mil e o Museu de Arte Moderna de Nova York, apenas 3 mil.
Por que então o golpe contra a cultura? Na palavra de Malraux (não mais o revolucionário, o escritor de La Condition Humaine ou o cineasta de L'Espoir, e, sim, o ministro da Cultura de De Gaulle), embora seja louvável e indiscutível o esfôrço de Langlois, a Cinemateca deixou de ser há muito um empreendimento privado e tornou-se instituição encarregada de um verdadeiro serviço público. Então, segundo o argumento ministerial, era-lhe necessária uma gestão menos pessoal e mais controlável.
Mas êsse ponto de vista é extremamente minoritário nos meios cinematográficos e culturais. Aí estão os telegramas, declatações e manifestos de milhares de diretores, atrizes, produtores, intelectuais, escritores do mundo inteiro; além de organizações culturais. Poucas vêzes uma demissão gerou tanta repulsa. Veja-se o que foi dito por alguns dos maiores cineastas de todos os tempos. De Beverly Hills, Fritz Lang telegrafa e, além da solidariedade a Langlois, proíbe até nova ordem a projeção de seus filmes na Cinemateca, sob a nova administração. Chaplin também telegrafa, protestando em nome da arte. Dreyer, em telegrama bilingue (inglês-francês), considera um escândalo a saída de H. L. Welles, ao julgar o ato como arbitrário, e, assim como Lang, proíbe a exibição de suas fitas.
Em reunião vibrante, presidida por Jean-Luc Godard, foi organizado o Comitê de Defesa da Cinemateca Francesa. Lá estiveram entre outros, além do diretor de La Chinoise (proibida aqui pelos tartufos caboclos), Jean Renoir, Marcel Carné, Jean Rouch, Simone Signoret, Claude Chabrol, Alexandre Astruc, Pierre Kast e Nicholas Ray. E o cerne da questão foi aquêle descerrado por todos os presentes: Langlois é, a seu modo, o poeta - sem êle, é a luta para livrar a arte da contaminação da burocracia e dos flics.
Na rua, com a polícia em volta, ao lado de estudantes, cinemaníacos e populares, envergando cartazes com o nome de Langlois, cineastas e atôres continuaram o movimento. Se não prevalecer o bom senso de reintegrar-se Langlois em suas funções, êste - pelo menos - através de tôdas as manifestações já terá a consagração do seu trabalho inusitado na história do cinema. Ou, como disse Godard, o grande filme chamado A Cinemateca Francesa, com roteiro e direção de Henri Langlois.
Correio da Manhã
16/03/1968