Quando invocar os morangos colhe-se um segredo...
O estado de velhice é uma das situações tematicamente pouco exploradas no cinema. Dentro da perspectiva da indústria do entretenimento - a fábrica de ilusões – tratase de um assunto ingrato, onde a previsão de uma forçosa monotonia para as ações, mesmo que funcional, assusta a quem deseja imediata multiplicação para o capital invertido. O velho é quase sempre um coadjuvante nos elencos. E até quando se trata de uma fita biográfica, na qual o protagonista somente durante a idade madura tenha realizado os feitos que lhe propiciaram notoriedade, os argumentos, via de regra, reportam-se em boa parte à fase da mocidade, a fim de que surjam as inevitáveis mulheres bonitas que o "inspiraram" ou o "estimularam".
Há pouoo mais de dez anos, no auge do período neo-realista, Vittorio De Sica, então no apogeu, lançou uma de suas obras máximas: Umberto D. Um velho professor aposentado, acuado como um animal, entregue ao desamparo social, quase que escorraçado pelas contingências, decide, ao fim, pôr têrmo à própria existência. Fica postado na linha férrea, à espera de morrer esmagado pelo trem e trazendo consigo, no colo, o seu único amigo: um pequeno cachorro. Mas êste, quando pressente as intenções do companheiro, escapados seus braços e, na ânsia de recuperar a confiança perdida, Umberto corre atrás dêle, sob o impacto de um nôvo alento para sobreviver.
De Sica, fortemente imbuído do espírito de Chaplin, focalizou o problema dentro de uma visada social e banhada pelo seu indisfarçável sopro humanista. Umberto D ficou como uma espécie de obra-prima, mas não se pode dizer que traduza uma imersão naquelas maiores profundidades do pensamento.
INGRID & INGMAR
O cineasta sueco Ingmar Bergman é um daqueles homens do métier que obtiveram a fama da maneira mais súbita. De um dia para o outro, saiu do âmbito restrito dos críticos especializados e de alguns cinemaníacos, para a capa do Times. Ganhou uma sequência de prêmios em festivais e chegou a virar moda gostar de Bergman. Em algumas ilhas esnobistas, Ingmar quase obtém o cartaz de sua homônima, Ingrid. Ajudando a isso, extra-artisticamente, estão os seus diversos casamentos seus casos amorosos e – filho também de um pastor protestante - a pinta do místico, prêso a uma espécie de pacto com o diabo.
Depois de uma série de fitas, algumas de grande fôrça (Noites de Circo, Juventude), onde a constante era a saga do verão sommar) e as suas conotações com o amor, além de uma série de implicações panteístas, voltou-se o diretor para outras vertentes. São elas, na opinião de determinados estudiosos, compromissadas com uma posição mais literária e menos cinematográfica. Contudo, foi nesse instante que o seu nome atingiu à consagração. Sorriros de Uma Noite de Amor, O Sétimo Sêlo, Os Morangos Silvestres, No Limiar da Vida, A Fonte da Virgem, O Rosto Mágico, todos êstes filmes receberam prêmios em vártas mostras.
OS MORANGOS SIMBÓLICOS
De todos, talvez seja Os Morangos Silvestres a obra mais profunda de Bergman. E, aqui, ao contrário de De Sica, êle toma o problema do seu protagonista - um velho professor universitário que vai à capital para as solenidades do seu jubileu - através de um verdadeiro transe ontológico. A indagação principal a que nos remete o cineasta é a respeito do próprio sentido de nossa existência, onde no fluir de uma dialética permanente, as descobertas e redescobertas se sucedem a todo o momento em que o homem se coloca em situação. E a última será a mais decisiva, apenas porque traz o sêlo da morte – uma obsessão do autor.
O dr. Borg, enquanto viaja no carro dirigido por sua nora, através das conversas que mantém com ela e com outras pessoas que aparecem no meio do caminho, se redimensiona, ao redimensionar os fatos passados de sua vida. E quando cai no sono, é assaltado pelos sonhos, os mais insólitos - que representam uma alegoria dos seus dramas de consciência.
Essas sequências oníricas, algumas bem próximas do diapasão surrealista, constituem os pontos máximos da capacidade do diretor em sua expressão visual. Na primeira delas, ele se encontra numa rua de uma cidade deserta, quando surge uma carruagem sem cocheiro a carregar um caixão com o seu próprio corpo. Ao fundo, um relógio sem ponteiros, simboliza a elisão do tempo - a eternidade. Noutra, após ter, na realidade, conduzido em seu carro um casal algo cínico e amoral, sonha que está sofrendo uma espécie de exame de sua vida em que o marido é o mestre
de cerimônias. Nas duas restantes, volta à sua juventude e revive instantes sentimentais da época, com uma jovem idêntica à estudente que também, depois de haver encontrado junto com dois colegas, leva para Estocolmo. Porque a primeira parada na jornada, foi exatamente no mesmo local – uma residência deserta de verão - onde a sua família passava as férias no início do século. Aí, reencontra o lugar onde, quando jovem, colhia morangos silvestres. Os morangos são um título e um símbolo - talvez, basicamente, o da pureza perdida com o egoísmo. É um mistério, sem conter, de propósito, uma explicação plausível, a não ser a inovação. Como também o é, numa das imagens mais furiosamente belas, aquêle berço ao crepúsculo, sob uma árvore frondosa.
VICTOR SJÖSTRÖM
No papel principal, numa das maiores interpretações que o cinema ultimamente registra, está Victor Sjöström. Foi êle justamente um dos grandes diretores da época do cinema mudo, com algumas fitas inesquecíveis em seu acêrvo: A Carreta Fantasma, O Sonho (baseado no romance de Zola), Nosso Pão de Cada Dia, Terje Viggen, Os Proscritos, O Dinheiro de Judas e, em Hollywood, O Vento (com Lillian Gish), The Scarlet Letter (baseado em Hawthorne), Hell Ship e outros sucessos. Em 1912 estreou no cinema, como ator, em O Vampiro, dirigido por outro grande, Mauritz Stiller.
Antes de Os Morangos Silvestres, já tinha figurado noutro filme de Bergman: Até a Felicidade. Porém, aqui, já aos setenta e poucos anos, consuma uma interpretação inesquecível e quando o dr. Borg, dorme, no desfecho, como se fôsse morrer finalmente tranquilo, parece tratar-se do coroamento de uma notável carreira. Era, sem dúvida, a maior homenagem que o maior cineasta sueco do presente poderia prestar àquele que foi o maior no passado, em seu país. Os morangos sempre renascem e é preciso saber colhê-los.
Correio da Manhã
28/08/1962