É uma das atrizes mais famosas do momento. E é também uma grande atriz. Consideram-na uma espécie de Bette Davies do cinema moderno. Na realidade, Jeanne Moreau apresenta uma certa semelhança física com aquela outra admirável atriz do passado, bem como existem algumas caracteristicas comuns entre ambas, quanto ao modo de interpretação e a intensidade dramática dos papéis que representam na tela.
Mas, aqui cessa tôda a semelhança. A longa carreira da atriz de Hollywood propiciava tôda uma configuração da tragédia pura, a partir de um personagem feminino que, conforme o critério de fabulação para cada papel, via desabar sôbre si tôda a arquitetura hierárquica de um sistema de princípios morais. A relação mulher-pecado era a constante que fornecia as respectivas tonalidades ao jôgo de paixões - tudo segundo uma tradição Iiterário-romanesca que exprimia conjunturas vivenciais encerradas dentro dos padrões burgueses e aristocratas. Dêsse modo, a posição da mulher jamais permanecia sob a perspectiva de um sentido de libertação e consequente afirmação dentro de um processo sócio-econômico que, hoje, justamente lhe confere tal possibilidade de independência, a prover a funcional interdependência com o outro sexo.
O desfechar da segunda revolução industrial e a evolução crescente da máquina – automação - criando, por conseguinte, métodos de comunicação uItra-rápidos e assim, finalmente, o acesso imediato e mais adequado à informação, torna cada vez menor a necessidade do esfôrço físico, em favor de um maior índice de tarefa mental. Nesse ponto, através então do maior acesso ao trabalho, a mulher se desvencilha naturalmente de um jugo que, exteriormente, se apresentava sob o rótulo de regras morais, mas que no fundo, tinha tôda uma infra-estrutura econômica como única razão de ser. Daí, ingenuidade, docilidade, virgindade etc., tôdas estas abstrações vão perdendo o seu caráter efetivo.
Sôbre essa faixa de especulação existencial, em função do nôvo processo, é que atua de modo significativo o mito desencadeado por Jeanne Moreau. Dentro de uma carência funcional, evola-se o conceito de pecado (uma pura abstração), impossibilitado sequer do mínimo acondicionamento dialético. Agora, temos pela frente uma mise en situation, em contingências sociais, econômicas e ontológicas, onde vai-se inferir o sentido de uma liberdade essencial, a prefigurar uma nova ética ao comportamento, de acôrdo com a relatividade dos dados e elementos postos em mútuo confronto. Filmes como Amantes (Les Amants), Ligações Amorosas (Les Liaisons Dangereuses), A Noite (La Notte) ou Uma Mulher para Dois (Jules et Jim) podem ser considerados os principais na fixação dêsse mito. Outros mitos, no cinema moderno, como BB ou MM, mais populares e agressivamente escandalosos, numa quase fúria selvagem, embora cumpram um salutar objetivo de choque, não trazem um conteúdo maior, através de sua. formulação e mesmo da grande parte das fitas sem importância onde atuam. Ao lado da missão explosiva, não existe uma outra que expresse, construtivamente, uma contribuição ao pensamento.
A carreira de Jeanne Moreau iniciou-se em 1948, porém, apenas dez anos depois, através de dois filmes dirigidos pelo seu então marido, o jovem cineasta Louis Malle, é que teve o grande salto qualitativo, isto é, a sua personalidade foi melhor aproveitada em realizações de amplitude. Sua fita de estréia chamava-se Dernier Amour, foi dirigida por Jean Stelli (um quase desconhecido) e nem mesmo sabemos se chegou ao Brasil. A sua primeira boa oportunidade deu-se em 1953, dirigida por Jacques Becker e contracenando com Jean Gabin, em Touchez Pas au Grisbi (Grisbi - Ouro Maldito) - uma história de gangsters bem realizada. No ano seguinte, viveu a Rainha Margot, baseado no romance de Alexandre Dumas - um bom filme, bem fiel ao espírito do gênero, dirigido por Jean Dréville e supervisionado pelo grande Abel Gance. Salvo engano, foi onde Jeanne Moreau pela primeira vez apareceu despida.
Então, em 1958, além de uma realização razoável de Edouard Molinara, Perversidade Satânica (Le Dos au Mur), protagoniza os dois filmes de Louis Malle, que, especialmente o segundo, estariam abrindo-lhe as portas da glória: Ascensor para o Cadafalso (Ascenseur pour L'Echafaud) e Amantes (Les Amants). No primeiro, o seu papel lembra bastante a conjuntura dramática de alguns de Bette Davies: a mulher casada que, juntamente com seu amante, planeja o assassinato do marido. No desfecho, a punição - tanto física (do criminoso), como moral (da espôsa). Nada mais, além da excelente cinegrafia e de uma pálida justificação ética para o pacto. Contudo, em Les Amants a perspectiva já é bem mais profunda, onde temos inclusive uma cena de amor tão ousada quanto ao do célebre Êxtase, com Heddy Lammarr, embora menos poderosa cinematograficamente. A frontal renúncia da mulher a um tipo de vida inconsistente numa sociedade alienada, com a muda e exemplar secura da sequência final, quando sai para ir embora, junto com o amante, e encaminham-se para o carro dêste, diante do marido e todos os hóspedes e criadagem, sem trocar um aceno de despedida.
O ano seguinte foi o de Les Liaisons Dangereuses (atualmente em exibição), adaptado da obra de Laclos. Aqui, sob a direção de Roger Vadim, que trocara BB por Annette, e numa transposição do texto original para a atualidade, é uma das partes de um casal de comportamento de vanguarda, completamente amoral – e que se dedica ao amor numa ética do fair play esportivo. Embora o diretor se esmerasse no tratamento visual de determinadas passagens, não conseguiu fornecer uma dimensão maior do contexto total: a atitude do casal, inteiramente desagregadora, e com uma espécie de lição final para ambos.
Logó após, trabalhou Jeanne Moreau com um dos maiores cineastas de hoje - Michelangelo Antonioni - no maior filme que ela já estrelou: A Noite, a ser brevemente lançado no Rio. Marcello Mastroiani é um escritor que não vê maior sentido em seu ofício num universo eletrônico e abafado numa sociedade absurda. Ela é a sua mulher – lúcida e acuada no bêco sem saída, onde, para o casal, o máximo de amor é a compreensão e a piedade recíproca. A mulher intelectual, friamente consciente.
Ainda assistiremos a duas fitas importantes em sua carreira: Jules et Jim, dirigida por François Truffaut (um dos trunfos da nouvelle vague), com o ménage à trois e numa tentativa de fazer uma espécie de hino à vida, à amizade entre dois homens; Eva, realizapa pelo diretor Joseph Losey, há algum
tempo, emigrado de Hollywood, devido à perseguição do macartismo.
A carreira de Jeanne Moreau, perfaz, assim, a concretização de uma espécie de mito necessário para cristalizar um futuro pela frente a se coadunar forçosamente com uma realidade contingente, que cabe ao artista ("antena da raça" - Pound) inaugurar: o comportamento lúcido, através da liberdade responsável. "Viver efetivamente, com a informação adequada" (Wiener), porque os fantasmas, tanto os do mal, como os do bem, estão desaparecendo.
Correio da Manhã
18/08/1962