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Eisenstein – Uma usina, projetando luz nas telas

"Não há arte revolucionária sem forma revolucionária" – está frase de Maioakóviski, o maior poeta russo do século, o maior poeta da revolução, poderia também ser dita, com a mesma ênfase, por Eisenstein, o maior cineasta russo do século, o maior cineasta da revolução. E, no entanto, ambos sofreram na pele o que se pode entender como o horror da estatização da arte, das formas de criação. Assim como outro grande poeta, Iessiênin, Maiakovski acabou se suicidando. Eisenstein ficou como uma espécie de exilado em sua própria terra. E quantos outros grandes nomes não foram varridos, processados ou amordaçados? Basta lembrar Pasternak, Kandinsky, Meyerhold, Gabo, Fevsner. Hoje, tanto o cineasta, como o poeta estão sacramentados em sua pátria. Nada de mal; já estão mortos, houve o degelo, não incomodam o burocracismo fanático que gerou as amostragens ridículas do realismo socialista. O certo é que o cinema era uma coisa antes e ficou outra coisa depois de Eisenstein. A montagem das multifacetas de seus interesses estéticos, políticos e literários viria a resultar na própria concepção de montagem no filme. Aliás, essa idéia de montagem já vinha desde o início dele no teatro, com a montagem de atrações (primeira teorização sua no tema). Logo depois, já estava enfronhado na literatura oriental, especialmente as formas concisas da poesia japonesa (haiku e tanka), o que lhe proporcionou um dos seus melhores e mais instigantes ensaios: O Princípio Cinematográfico e o Ideograma (que tivemos ocasião de publicar, em versão nossa para o português, no livro A Idéia do Cinema).

Aurora nascente
Castelo cercado
Pelo brado de patos bravos.

Um vagão de idéias

Aí está, no exemplo acima, não apenas a observação a respeito do laconismo, mas também a idéia de montagem - cada verso (ou simples linha do poema) correspondendo a uma tomada.
Aí entra a afinidade do cineasta com outro grande poeta, Ezra Pound. O poeta norte-americano (que, por sinal, influenciou uma geração inteira com suas idéias), além de traduzir poemas do chinês, foi buscar no ideograma, amparado também no sinólogo Ernst Fenolosa (The Chinese Written Character as a Medium of Poetry), aquilo que consagraria a poesia imagista. E, principalmente, na analogia ideográfica com os métodos de montagem, a estruturação dos seus Cantares.

Não é também por coincidência que tendo sido Pound o maior "empresário" de obra de James Joyce (especialmente Ulysses), Eisenstein tenha também surgido como um dos admiradores mais ferrenhos do mesmo Joyce, e de Ulysses com destaque. Em carta a Leon Moussinac, datada de 22 de novembro de 1928, solicitava: "Como sempre, tenho um pedido a você. É que possuo ainda uma paixão - James Joyce. Sua obra nova publica-se neste momento em Paris, no jornal Transition. …Para mim é uma grande pena, por causa de seus olhos jamais poder mostrar meus filmes a esse homem tão notável. Meu interesse sobre ele e seu Ulysses não é só platônico - o que Joyce faz com a literatura está bem próximo daquilo que fazemos e mais ainda temos intenção de fazer com a nova cinematografia. Desespero-me por ter tão pouco tempo - estou com um vagão inteiro de idéias sobre Joyce e o cinema do futuro.'' Mais tarde, num ensaio intitulado O Mal Voltairiano, Eisenstein ligava o nascer do cinema intelectual ao conhecimento de Ulysses, com a sua "inimitável materialidade dos efeitos de escrita". (O Mal Voltairiano - onde se demora abordando Joyce também através do Finnegans Wake e do disco gravado por este último, reproduzido há tempos pela Folkways - é um ensaio constante das Obras Escolhidas, editadas em Moscou em 1964, e traduzido para o francês por Jacques Aumont para o Cahiers du Cinéma; número especial 226-227, em janeiro-fevereiro de 1971.)
E, para a importância conferida por ele à palavra-valise (portemanteau), cujo âpice em quantidade e qualidade estava no mencionado Finnegans Wake, havia, em paralelo o interesse por Lewis Carrol, o especialista cum laude. Por outro lado, o problema simbólico da cor, a associação imagem-som, era motivo de atração por Rimbaud, principalmente o soneto das vogais.
Novamente voltamos a Maiakovski e outras afinidades, o sentido do personagem coletivo.
150.000.000 é o nome do artesão deste poema.
A bala é o ritmo
A rima – a flama de casa em casa 150.000.000 falam por meus lábios
Pela rotativa dos passos
Sobre o traçado das calçadas das praças
Ficou impressa esta edição.
Walter Benjamim (Die Literarische Welt, em 11 de março de 1927, diz que, no Encouraçado Potemkin pela primeira vez, o movimento de massas tem o caráter plenamente arquitetônico e, no entanto, nada de monumental - o que, por si só, demonstra a precisão de seu registro cinematográfico. Continuando: "Em consequência, Potemkin foi realizado no sentido do coletivismo. O chefe dessa revolta, o capitão-tenente Schmidt, uma das figuras 1endárias da Rússia revólucionária, não aparece na fita. É, caso se queira, uma 'falsificação histórica', mas isso nada tem a ver com a avaliação do sucesso”.

Como Da Vinci

O Leonardo Da Vinci do cinema. Desde cedo. O interesse e participação nas artes de vanguarda. A tendência de entrosamento do cinema com todas as modalidades de criação: a literatura, o teatro, a dança, as artes plásticas. O rigor e meticulosidade no preparo de cada cena de um filme. A teorização permanente, em artigos e ensaios que, até hoje, possuem plena atualidade, pelo menos, em termos de mínimo-múltiplo-comum da cinematografia, como aque1a eterna "verdade segunda” à qual se referia Merleau Ponty, ao colocar Marx na estante, ao lado de Aristóteles ou um Santo Agostinho (Signes). É só comprovar – os seus croquis, ou o rabisco prévio de cada fita. Porque Desenho, em Reflexões de um Cineasta: "Sem uma visão concreta dos fatos e gestos e da disposição espacial, impossível notar o comportamento dos personagens.
Interminavelmente, vê-se-os evoluir.
É, por vezes, tão alucinante, que quase seria possível, desenhá-los sem reabrir os olhos. Seria neçessário um ano, dois, três talvez, antes da primeira volta da manivela.
Daí, há o empenho de gravar no papel o mais essencial.
E eis um desenho...
Não é uma ilustração de cenário. Menos, ainda, um esboço.
É ta1vez a primeira intuição de uma cena que o roteiro irá, em seguida, transcrever e registrar.
Por vezes, também, um procedimento empírico destinado a prever, nessa etapa preliminar o comportamento dos personagens na iminência do nascimento.
Outras vezes, ainda, a anotação abreviada da sensação que a cena deve fazer brotar.
Mais comumente, trata-se da procura de alguma coisa. Uma procura sem término, como aquela, vinte vezes repetida, do movimento de uma cena, do encadeamento dos episódios, do entrecruzar de replicas no interior de um episódio.
Talvez a cena que virá a ser filmada não terá, aparentemente, mais nada em comum com o desenho. Talvez ela será, com dois anos de distância, esse mesmo desenho que passa a viver...
Em decorrência, cada fotograma era tratado como se fosse uma obra de rigorosa arquitetura plástica. Isso, provavelmente, foi que inspirou Roland Barthes a escrever o seu Note de Recherche Sur Quelques Photogrammes de S. M. Eisenstein... "O fílmico é diferente do filme: está tão longe do filme, como o romanesco do romance" .... "em certa medida, o fílmico, bem paradoxalmente, não pode ser captado no filme 'em situação', 'em movimento', 'ao natural', mas somente, ainda, nesse artefato maior que é o fotograma " ..... " o fotograma nos propicia o interior do fragmento". (Cahiers du Cinéma, nº 222).
Desde o primeiro filme, até o último, essa sadia obsessão pelo perfeccionismo marca o artista. Pode-se notar que não existe foto de qualquer cena de fita sua em que não pareça estarmos diante de um quadro, uma gravura. Desde também o primeiro filme, essas miniarquiteturas plásticas (seus fotogramas) vêm orquestradas pelos métodos de montagem, quando diversas sequências antológicas se formam. A montagem (a idéia de arte como conflito) começou a ser objeto de teorias a partir de 1924, quando ele escreveu um artigo na revista LEF sobre a montagem de atrações. Eis o princípio básico. Posteriormente, no seu livro, Filme Forma, discorreu sobre as quatro modalidades de montagem: 1 - montagem métrica; 2 - montagem rítmica; 3 - montagem tonal; 4 - montagem harmônica (das quatro dimensões).

Montagem de atrações

Possivelmente, o exemplo mais característico do que Eisenstein entendia por montagem de atrações esta em Greve. Abarca toda a grande sequência final, em que, paralelamente ao massacre dos operários pelos soldados do tzar, assistimos à matança de um boi, sangrado e cortado. A identificação hegeliana (tese-antítese-síntese), de modo mais nítido, espelha-se nessa espécie (imagem A x imagem Befeito do choque entre as duas ou nova síntese na espiral significante).
Cada obra, pelo menos uma sequência inesquecível. Ainda na Greve é a dispersão dos amotinados através-das duchas de água das mangueiras, cerca de dez minutos de pujança pictórico-musical (o espaço e o ritmo como música), o branco agressivo das duchas riscando o fundo cinza em paralelo com o movimento de massas. No Encouraçado Potemkin, a sua passagem mais consagrada, as célebres escadarias de Odessa, com a nave alvejarido o povo pelos degraus, caindo, em correria, onde a metrificação dos close-ups detalhes e variações de tomadas, sem falar na metralhadora de cortes, já se tomou prato farto na história de idéias estéticas. Em Outubro, a sequência da tomada do palácio, em que mais uma vez o movimento de massa e os detalhes entrecruzam-se, em efeitos de montagem de atrações e montagem ritmica. Na Linha Geral, outra sequência que emocionou o mundo: a da desnatadeira mecânica iniciando seu funcionamento perante os camponeses algo incrédulos, atônitos, depois entusiasmados. Enfim, a sensacional batalha do gelo, em Alexandre Nevski, com o nível cromático se ajustando a composições cênicas magistrais, principalmente os capacetes e as lanças na vertical, além da adequação do acompanhamento musical de Prokofiev.
Até hoje o legado de Eisenstein está na sintaxe do cinema. É claro que outros, como Welles, Resnais, Godard, Kubrick, etc. vieram e inovaram e até mesmo por causa do handicap da evolução técnica da sétima-arte.

Intuição e raciocínio

Hâ uma foto algo escurecida e despretenciosa. Nela, vemos um homem calvo, sentado, a cabeça meio sonolenta, pendida: parece estar fazendo alguma coisa, ajustando algo com as mãos. Em volta dele, livros e, no fundo, uma espécie de tapeçaria com figuras primitivas. Esse homem é Eisenstein. Sobre sua cabeça, devidamente emoldurada, a foto de um outro personagem. Bem trajado, perfn nobre, olhar límpido, embora dando a impressão de estar fitando para dentro de si mesmo. A sua figura lembra um misto de descendente egresso do castelo de Axel e de Sir Percy Blackney, o Pimpinela Escarlate da Baronesa de Orczy, tal como vivido por Leslle Howard no cinema. Sob a fotografia, existe uma dedicatória: "A meu amigo, Serge Eisenstein, com minha sincera admiração". Assinado: Charles Chaplin. Ali não há nada de Carlitos, dobigodinho, do vagabundo desajeitado, do olhar lirico em moldura histrionica. Nem o Chaplin cínico, em pose de Verdoux. O que há é o Chaplin hierático, em postura de gala - as galas que, segundo ele, o amigo russo mereceria. Essa traduz a primeira prova de identificação entre as duas personalidades.
Mas, existe uma segunda. Também uma segunda fotografia. Numa quadra de tennis, estão os dois cineastas de pé, posando ao lado da rede, ambos tangendo as raquetes como se fossem uma viola, um violão, uma guitarra. Sorriem em uníssono. Eisenstein ainda não estâ calvo, porém mantém a alvura do traje de tênis para a época: camisa, sapatos e calças brancas - suspensorios e cintos escuros. Chaplin, apesar da camisa sem gola, sapatos e meias brancas, está de calção negro, com a camisa cafda por cima, quase que a cobri-lo inteiramente.
É a confraternização. Os dois maiores cineastas de, pelo menos, a primeira metade do século, diferentes no fazer, harmoniosos no ser. Chaplin partia da intuição pura e simples e chegava à emoção racionalizada, num mínimo-múltiplo-comum de etapas queimadas. Eisenstein partia· de um racionalismo rigoroso e chegava à emoção por meio do método.
Mas, como se entenderam! Eisenstein, que, ao contrário de Chaplin, sendo teórico, também escrevia sobre o que realizava, tem dois ensaios magistrais sobre a arte do amigo: Carlitos - O Garoto, de 1939, e O Grande Ditador, de 1941.
"O que me comove não é tanto o seu estilo de diretor."
"Não são também seus meios."
"Nem seus truques."
"Nem a técnica de sua comicidade."
"Não."
"Nem é também aquilo que desejo desvendar."
"Quando se pensa em Chaplin, existe, de início, a vontade de iluminar o ineditismo de seu giro de pensamento, que percebe os fenômenos de modo tão estranho e reage de maneiras também estranhas, e, depois, no interior desse giro de espírito, a vontade de identificar o elemento que, antes de se formar como ponto de vista sobre o real, passa pela etapa de registrar o mundo exterior."

O cineasta olímpico

E volta Eisensteln, em sua observação: "O símbolo de todo um sistema de mecanização e automatização da inteligência". "Uma espécie de automação intelectual".
E mais: "O verdadeiro, o comovente 'eleito de Deus', com o qual sonhava Wagner envelhecendo, não é Parsifal curvado diante do Graal no meio das pompas de Baireuth, mas Carlitos entre as latas de lixo do EastSide.”
"A crueldade amoral da infância diante da vida, que é o ponto de vista de Chaplin, confere ao personagem de suas comédias todos os outros aspectos comoventes da infância."
Eisenstein, como se vê, não é apenas um grande teórico, mas um grande crítico.
E como seria essa partida de tênis da razão contra a intuição? Eisenstein, de um lado da quadra, com movimentos corporais harmoniosos, sacando forte, com um giro isomórfico da·cintura e da raquete, a buscar a bola, em descida - suas paralelas e cruzadas, de forehand ou backhand, precisas, seu smash certeiro e colocado, o voleio outro tanto - postura e estilo impecáveis, de acordo com a escola européia de então, sempre batendo na bola com o corpo de lado, enquanto o grip (modo de segurar a raquete) trasforma a mesma raquete num prolongamento do braço. Chaplin – bem diferente - bate de frente, a raquete parece atrapalhá-lo, saca sem nexo de postura - mas dâ drop-shots e lobs surpreendentes, tem um forehand liftado que dâ efeito ao bater a bola no solo e, ao mesmo tempo, distribuiu, sem intenção (é claro, um turbilhão de net-balls, pingando quase sempre do lado do adversário. Quem ganha o jogo? O espectador.

Esta, a nossa montagem de Eisenstein. O cineasta por excelência num sentido olímpico. Entre os fogos cruzados da falta de idéias e falsos ideais. Em Hollywood, foi vetado pelo conteúdo. Em sua pátria foi vetado pela forma (o que é mais grave). Mas acabou ficando. Voltando então a Maiakovski, aplica-se à obra do cineasta aquilo que o seu companheiro, poeta, dizia do livro (quando era pouco lido em sua época), feito para produtores, como a usina a gerar energia para as sub estações transmissoras (produtores) e que acende a lâmpada no lar dos comsumidores. Com Eisenstein foi a usina do cinema projetando luz nas telas.

Jornal da Tarde
14/06/1980

 
Uma Odisséia de Kubrick
Revista Leitura 30/11/-1

As férias de M. Hulot
Jornal do Brasil 17/02/1957

Irgmar Bergman II
Jornal do Brasil 24/02/1957

Ingmar Bergman
Jornal do Brasil 03/03/1957

O tempo e o espaço do cinema
Jornal do Brasil 03/03/1957

Ingmar Bergman - IV
Jornal do Brasil 17/03/1957

Robson-Hitchcock
Jornal do Brasil 24/03/1957

Ingmar Bergman - V
Jornal do Brasil 24/03/1957

Ingmar Bergman - VI (conclusão)
Jornal do Brasil 31/03/1957

Cinema japonês - Os sete samurais
Jornal do Brasil 07/04/1957

Julien Duvivier
Jornal do Brasil 21/04/1957

Rua da esperança
Jornal do Brasil 05/05/1957

A trajetória de Aldrich
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Um ianque na Escócia / Rasputin / Trapézio / Alessandro Blasetti
Jornal do Brasil 16/06/1957

Ingmar Berman na comédia
Jornal do Brasil 30/06/1957

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