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Rio - Zona Norte

"Rio - Zona Norte" torna a colocar em foco as boas oportunidades existentes de fazer cinema sério no Brasil, prescindindo, ao mesmo tempo, das exacerbadas facilidades concedidas pelos poderes públicos, muitas das quais se consumam em perfeitos atentados a arte cinematográfica.
A equipe de Nelson Pereira dos Santos pelo que nos foi dado observar através das duas realizações já lançadas, é no momento, a mais eficiente, a mais compenetrada das implicações estéticas pertinentes à esfera do filme. Depois da famosa derrocada da Vera Cruz pouco se possuía no que tange a objeto de confiança, pois a Atlântida passa a intensificar ainda mais o grau de "nonsense", de inconsequencia animadora das suas produções. "Rio - Quarenta Graus" veio quebrar a cadeia de incongruências, foi uma réstea de luz no quase-perene quadro escuro do cinema nacional. "Rio – Quarenta Graus", cuja apresentação ao público ficou prestes a se tornar coibida, graças às acusações de "comunista", fruto do estímulo ao culto da capetice cretina ainda estranhamente encontrável em pleno século XX, na era do "Sputnik"...
Essa primeira película, que, de certo modo, se filia às correntes do neorealismo, oferecia aspectos bem desiguais no tratamento da linguagem cinematográfica. Se, por um lado, criou algumas cenas eivadas com felicidade de uma grande dose de pungência (os trechos do pequeno vendedor de amendoim dentro do Jardim Zoológico), por outro ainda permitia que se denotassem sequencias vazadas em determinadas facetas do primarismo imperante em nosso cinema = a gratuidade de algumas soluções previstas desde o argumento, a completa inexperiência de certos atores. Contudo, em se falando a propósito de um nível internacional, era uma fita razoável - melhor e mais inventiva que a nossa ''marca do zorro'' premiada em festival (Sinhá Moça).
Agora, através de "Rio – Zona Norte", vamos deparar com uma realização caprichada do princípio ao fim, o enquadramento das várias passagens sempre apurado com vistas a uma estrita funcionalidade estética, os cacoetes dos intérpretes muito bem policiados, recursos ou efeitos inventivos, enriquecendo, por conseguinte, as pulsações rítmicas, divididas entre duas açõe paralelas em crescendo, mas portadoras de localizações temporais diversas.
O argumento, simples e sem maiores pretensões intelectualizantes, se desenrola escorreito e bem valorizado em bom número de instantes que favorecem o esmiuçar das nuances mais expressivas. No que se refere a esta parte, o "script" filtrou com eficácia o núcleo de elementos possivelmente férteis em soluções cinematográficas.
Destarte, a partir do início, temos já uma boa tomada de Grande Otelo caído na via férrea, rodeado pelos circunstantes que logo se acercam e, a seguir, um excelente "close-up" do protagonista, com um lado de sua cabeleira marchetado de branco. Posteriormente, as sequencias decorridas no café, com a escola de samba, revelam uma ótima capacidade dos realizadores no que se relaciona à criação de uma ambiência - o ritmo das imagens propositadamente lento, os admiráveis efeitos plásticos do prêto-e-branco, ressaltando-se a disposição das bandeirolas que avivam o espaço destituído de ação, e o diálogo inteligentemente concebido, muito e calculadamente contido. Talvez sejam êsses trechos os melhores de "Rio - Zona Norte", onde nunca se tinha visto, entre nossos filmes, um cujo responsável fôsse capaz de compor uma longa passagem, tôda ela calcada pelo válido pêso de uma atmosfera densa, quando tudo contribui com precisão para o caráter compacto do trecho: as variadas angulações de câmera o enquadramento e o jôgo de iluminação.
Aliás, é a fotografia um dos pontos altos da película, embora existam algumas deficiências ainda de ordem técnica de menor importância: a maior, sim, são as boas intenções aliadas à capacidade.
O acompanhamento musical dos irmãos Gnatalli é também muito bom e, de certo modo, inventivo no sublinhar de algumas cenas, em especial aquelas em que o protagonista se encontra em transe. Excelentes e de sabor genuíno são os sambas compostos para a fita. Reafirmam em muito o teor autêntico desta, valorizando, ao mesmo tempo, a parte dita musical.
A direção de Nelson Pereira dos Santos nos parece aqui ainda melhor que em "Rio Quarenta Graus". A utillzação dos recursos estritamente cinematográficos está mais intensificada e com visível sucesso com vistas aos objetivos desejados. As fusões, principalmente, se consumam com grande felicidade. O contrôle sôbre os atares foi marcante, raras dissonâncias de vulto na questão interpretativa. Grande Otelo resiste muito bem ao papel demasiado saliente do qual teve que se desincumbir. Está quase sempre em cena e isso justifica plenamente alguns instantes de insegurança do jôgo fisionômico, no maior ou menor desiquilíbrio do pautar as reações do personagem que encarna. Em outros moment os, porém, surge muito expressivo e a sua máscara reforca bastante o caráter de adequacão para o uso do "close-up".
Paulo Goulart, entretanto, é quem merece grande atenção pela interpretação de elevado nível que consegue levar a cabo. Trata-se de um ótimo tipo e, num "rôle" que julgamos difícil por não ser justamente bem definido, demonstra um completo domínio e homogeneidade em tôdas exteriorizações, marcando um caráter exclusivamente pessoal. Apenas a sua dicção nos parece algo precária, malgrado se utilize com precisa funcionalidade das modulações de voz, de acôrdo com o necessário para o teor da sequencia no ritmo psicológico. Nesse filme, pelo menos, não deixou de ser uma grata revelação.
Jecé Valadão não tem a mesma oportunidade, mas atende com eficácia às solicitações contidas na sua parte.
O lado feminino, se não estêve tão bem defendido, não compromete. Malu e Mara Petar, de um modo geral bem, e até Angela Maria, em breve aparição, não chega a destoar.
O "décor" apresenta um nível elogiável, tanto no que se relaciona ao grau de autenticidade dos interiores como orientação no plasmar os efeitos alegóricos nos exteriores; e nesses ainda com o admirável refôrço da fotografia de Hélio Silva.
Em conclusão, deve-se ponderar que se todos os produtores existentes no Brasil oferecessem a mesma garantia de seriedade em seu trabalho, de perfeita compenetração ético/estética para com os problemas do cinema nacional, o oito por um seria inobjetavelmente justificável. Ocorre, no entanto, o contrário: a equipe de Nelson Pereira dos Santos se constitui justamente numa
exceção honrosa, pelo menos no momento e com a possível ressalva de algum amadorismo bem intencionado.
De qualquer forma, prova que não é necessário tanto capital e "facilidades" para se fazer bom cinema. Uma história simples, bem urdida (somente a afluência temática possivelmente demasiado banalizada da questão da parceria e do roubo das músicas populares de seus modestos e indefesos autores), sem apelar para grandes recursos de cenário e guarda-roupa. Aliás, se houve ultimamente alguma manifestação de desestimulo ao nosso filme, foi exatamente contra êste mesmo grupo, por ocasião do lançamento de "Rio Quarenta Graus", vítima das consideções de um ex-chefe de polícia e tudo por culpa do nosso legislador que até hoje pensa ser o cinema uma diversão como qualquer outra; que desconhece se tratar em essência de uma arte e, portanto, figura na esfera dos fatôres culturais, isento a princípio da intromissão policial. Daí, em consequência, e por analogia, de Oscar Wilde: "Não há livros morais ou imorais. Os livros são bem ou mal escritos. Nada mais." Isso tudo ainda levando em conta que o sarabandismo pornográfico de determinadas produtoras nossas, especializadas em películas carnavalescas (na certa, julgariam os mais ingênuos, são para o nosso cinema o que western é para Hollywood) tem passado em brancas nuvens, contando com incrível beneplácito.

Jornal do Brasil
24/11/1957

 
Uma Odisséia de Kubrick
Revista Leitura 30/11/-1

As férias de M. Hulot
Jornal do Brasil 17/02/1957

Irgmar Bergman II
Jornal do Brasil 24/02/1957

Ingmar Bergman
Jornal do Brasil 03/03/1957

O tempo e o espaço do cinema
Jornal do Brasil 03/03/1957

Ingmar Bergman - IV
Jornal do Brasil 17/03/1957

Robson-Hitchcock
Jornal do Brasil 24/03/1957

Ingmar Bergman - V
Jornal do Brasil 24/03/1957

Ingmar Bergman - VI (conclusão)
Jornal do Brasil 31/03/1957

Cinema japonês - Os sete samurais
Jornal do Brasil 07/04/1957

Julien Duvivier
Jornal do Brasil 21/04/1957

Rua da esperança
Jornal do Brasil 05/05/1957

A trajetória de Aldrich
Jornal do Brasil 12/05/1957

Um ianque na Escócia / Rasputin / Trapézio / Alessandro Blasetti
Jornal do Brasil 16/06/1957

Ingmar Berman na comédia
Jornal do Brasil 30/06/1957

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