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David Lean

Se após a realização de "O Condenado" (Odd Man Out) - película de caráter nitidamente antológico, Carol Reed deu a impressão de que seria o maior cineasta britânico, o tempo permitiu que essa idéia inicial fôsse desfeita em favor de um contemporâneo seu bem mais coerente no complexo propósito/execução da arte cinematográfica.
Na realidade, se porventura nenhuma das fitas de David Lean superou a obra-mestra de Reed, enquanto êste último assinala um visível e paulatino decréscimo de qualidade, a partir de "O Condenado" até chegar à beira do melodrama comercial com "Trapézio", por outro lado êle tem se mantido desde "Grandes Esperanças" (Great Expectations) - a primeira grande fita sua dickensiana - em elevado nível de eficiência como poucos diretores na história do écran conseguiram alcançar. É um dos grandes mestres do ofício em nosso tempo e, ao mesmo tempo em que homens como Bergman, Kubrick, Aldrich, Hitcheock, Sjoberg, Kurosawa ou Welles impelem a linguagem de cinema para a frente, êle desenvolve ao máximo possível o poder de tratamento com o material já lapidado, aperfeiçoando sensivelmente diversas facetas nesse terreno estético que ainda permaneciam vinculadas ao experimento formal fertilizante, aos lances de arrôjo inventivo despidos das soluções estruturais mais adequadas. Em tal campo, no domínio perfeito dos instrumentos de artezanato, na profunda noção de ritmo, na atuação sôbre os intérpretes, os grandes de Hollywood que mais se acercam do seu estilo - Stevens, Wyler, Mankiewicz, Huston - sem tomar em consideração as variações temáticas, jamais o ofuscam.

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A difícil absorção da atmosfera de Dickens que David Lean conseguiu levar a efeito tanto em “Grandes Esperanças", como em "Oliver Twist", fazendo dêsses dois filmes autênticas realizações de alto mérito artístico bastam para consagrar e evidenciar a capacidade de um "metteur em scène". Diekens é um escritor que, de forma semelhante a que ocorre com FauIkner, embora seja cinematográfico no que se refere ao critério de fixar um ritmo imagístico dentro do romance, é, por outro lado, paradoxalmente difícil de ser transposto para a tela justamente em virtude dessa própria imagística essencial ao seu "mood" e que está organicamente incorporada "ao método de estruturar as oscilações de intensidade do fluxo temático. Assim, quando se tenta elaborar um "script" baseado em obras de tal teor, torna-se raro o evitar que quase imperceptivelmente seja prejudicada a formulação dos meios de expressão da sétima arte através de uma transplantação de algo que, se já está praticamente visualizado de modo cinematográfico na mente do realizador, não passa outrossim de um "efeito" deflagrado mediante os processos formais pertinentes à outra esfera de especulação estética e que muitas vêzes não são passíveis de reversão imediata à função elemento do totum estrutura em diferente terreno de experiência. Trata-se do jogo de espelhos impraticável, malgrado sedutoramente mais fácil e também aparentemente mais fiel, com qual se perdeu Malaparte ao procurar transformar em cinema o seu livro, "O Cristo Proibido", e que restringiu a ação de Max Ophuls ao se prender excessivamente à imediata veracidade da ambiência de Maupassant, película que evou a cabo com argumentos extraídos de uma série de histórias do grande contista. Inadvertidamente está o homem de cinema imitando o homem de letras obrigado a traduzir em celulóide o que criou com palavras.
Porém David Lean, ao filmar as obras de Dickens revelou uma extraordiária acuidade para com o que seria gerar na tela efeitos análogos aos desfechados pelo escritor em "Grandes Esperanças" e "Oliver Twist". Em ambas as produções soube, a partir de uma adaptação rigorosamente confeccionada, aproveitar ao máximo tôdas as feições eminentemente típicas do clima dickensiano. Seu estilo encaixou~se devidamente a um ritmo necessário, calcado em pinceladas bizarras tanto no uso do décor como na caracterização dos personagens. Nesse ponto forçoso também é frisar que conseguiu com eficiência captar e, por conseguinte, conferir ênfase estritamente funcional à peculiaridade de Dickens de caricaturar seus personagens, especialmente os de cunho vilanesco. E, para taI, contou sempre com intérpretes de grande envergadura, do porte de um AIec Guinness, um John Mills, um Finlay Currie, ou uma Jean Simons. E, servindo a Dickens, Lean também serviu ao cinema, pois cenas antológicas, como a inicial do cemitério em "Great Expectations", ou a do refeitório dos garotos em “Oliver Twist", estão até hoje vivas na memória de muitos como ponto alto no que concerne aos meios de expressão atingirem plena maturidade.

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O drama do "desencanto burguês", já explorado com sucesso sob alguns prismas pelo cinema francês em seu apogeu época que vai do princípio dos "talkies" à deflagração da segunda grande guerra - viria outrotanto a atrair o cineasta inglês; agora, entretanto, a especulação metafisica atenuada pela coloração externa do "typically british".
Apoiado riurh "script" de Noel Coward, construiu um verdadeiro clássico, uma obra vazada em admirável unidade: "Desencanto" (Brief Encounter). Aqui não se encontram cenas isoladas a se destacar, pequenos laivos de genialidade inventiva. O filme é um todo equilibrado ao extremo, com uma lógica implacável regendo a cadeia de nuances de reações dos protagonistas Trevor Howard e Celia Johnson, esta numa "performance" digna da Falconetti de "Joana D'Are" ou da Blanche de Vivien Leigh em "Uma Rua Chamada Pecado".
Poucas vêzes a tragédia do cotidiano, condicionada pela rigorosa submissão aos preceitos do meio que cerca os personagens forneceu uma transfiguração patética tão exata como essa película. A mulher casada que às têrças-feiras vai sempre de trem até a pequena cidade vizinha fazer compras e ao cinema e que encontra o seu romance no dia em que outro homem, também casado, dela se aproxima, a fim de extrair o cisco que lhe incomoda a vista. O vislumbre de uma nova existência: a fuga da sufocante monotonia que está presente em todo os momentos de sua vida, prêsa a um marido bom burguês, ontologicamente irresponsável que nunca permitirá a violação dos seus repisados hábitos - quase simbolizados nos problemas de palavras cruzadas que procura sempre com perseverança solucionar nas horas de lazer. Porém os liames que prendem-na à essa absurda normalidade serão mais fortes, não será bastante livre em essencial para se responsabilizar sozinha e perante si mesma por um ato de rebelião. E o final se consumará na melancólica renúncia e retôrno ao lar insípido.
Lançada em 1945, antes portanto de "Grandes Esperanças", "Desencanto" foi a fita que desvendou de maneira decisiva as aptidões de David Lean. Poucas vezes também pode-se denotar cenas de interiores, onde decorrem a maior parte das sequências, tão bem fotografadas. Robert Krasker, o “camera-man”, mais tarde reafirmaria de modo insofismável as suas qualidades em filmes como "O Terceiro Homem", de Carol Reed, "Romeu e Julieta", de Castellani, ou "Trapézio", também de Reed.
"História de Uma Mulher" até certo ponto incorpora-se outrossim à linha de "Brief Encounter", malgrado se trate de uma realizacão visivelmente inferior. Trevor Howard figura outra vez como protagonista ao lado de Ann Todd, também
ótima atriz e cujo talento se revelou juntamente com o de James Mason através da excelente realização de Compton
Bennett, "O Sétimo Véu".

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O ecletismo de David Lean passou a se tornar mais notório com as suas últimas fitas "Sem Barreira no Céu", a comédia "Papai é do Contra" e o feérico "Summertime".
''Sem Barreirá no Céu" (The Sound Barrier) é indiscutivelmente um dos·melhores filmes de aviação já levados a efeito no cinema. Com a fotografia precisa de Jack Hyldiard é mantida uma tonalidade uniforme entre a quase totalidade das passagens com um ligeiro predomínio de um branco esfumaçado desde então já com uma função simbólica - a incerteza do porvir e o homem que se torna absoluto ao colocar em suas próprias mãos a chave real do conhecimento. Convém todavia ressaltar que não nos parece muito definido o roteiro de autoria do teatrólogo Terence Rattingan. O sentido da dialética contida no setor temático não aflora com muita clareza e consequentemente, prejudica o ritmo psicológico já que não faculta uma fixação precisa do "leit-motiv" das ações e reações dos personagens no tempo da película; logicamente, à exceção dos pequenos detalhes da criança ou da ave negra antes do vôo fatal, símbolo evidente de mau agouro. Ao mesmo tempo, é lícito supor que essa ambiguidade consiste, numa conceção ao próprio vacilar incerto dos responsáveis pela realização no que tange ao fornecer uma conclusão forçada pela relevância dos problemas invocados. Houve uma firme abolição do "partis-pris" místico, pois os fatos trazidos a foco correspondem à realidade do que já tinha sido alcançado pela ciência ou então ao que estava em período de franco e adiantado experimento. A velocidade supersônica atingida; e não se pretendeu fugir das proximidades do campo estrito da verdade. Porém o homem só, criador e criatura, caiu no círculo vicioso que contaminou os próprios realizadores; oscilantes entre os parques de Ann Todd e o radicalismo demiúrgico de Ralph Richardson.
Exatamente a elisão dos fitos especulativos tanto na esfera do místico como na da fantasia veio contribuir para o tom rigoroso e sóbrio que pauta todo o desenrolar do espetáculo com todos os recursos têcnicos obedecendo em seu emprêgo à mais salutar funcionalidade. E é êsse realismo dos dados postos em jôgo que ativa no espectador a noção do aspecto transcendental inerente ao dilema do indivíduo e o cosmos.

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As imensas possibilidades do "regisseur" britânico triunfar na comédia vislumbradas anteriormente especialmente nas fitas baseadas em Dickens confirmou-se de maneira inobjetável em "Papai é do Contra" (Hobson's Choice), uma das melhores películas no gênero e superior talvez aos principais trunfos apresentados dentro da Ealing tradiction. Uma comédia inglêsa produzida fora do âmbito da Ealing que rompe a sua hegemonia é um "tour de force" consagrador para qualquer cineasta. Um filme de costumes, desenrolado em grande parte dentro de uma sapataria em que o bizarro, o grotesco e o burlesco se misturam mediante doses calculadas para a pintura cintilante e fantasmagórica das situações criadas. Contou o diretor com um trio central de atores excepcionais fornecendo interpretações dignas do primeiro plano de registro no ano em que foi aqui exibida a película: Charles Laughton, extraordinário, reeditando as suas mais famosas atuações, John Mills, impecável, perfeito, na marcação de seu tipo, e Brenda: de Banzie, na época (cerca de dois anos atrás) praticamente desconhecida psra nós·e que foi uma admirável revelação.
A extrema noção no manejo do humor calcada com um apuro formal invejável - denotado desde o início com a disposição excelente da bota no grande primeiro plano, passando pela sequência antológica de Laughton bêbado às voltas com a lua numa pôça d'água até as cenas derradeiras - veio provar novamente não só o caráter eclético imprimido na obra de Lean tanto na temática quanto no estllo, bem como o elevado grau de maturidade de que é possuidor.

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Já em “Quando o Coração Floresce” (Summertime) se o principal assunto colocado em foco são as aventuras e desventuras de uma secretária solteirona e semi-histérica, Veneza é que leva a palma, ofuscando por completo o arrebatamento premeditado de certos trechos e atenuando em muito com a sua presença maiúscula as tintas fortes do quase dramalhão que David Lean se viu em determinadas passagens impossibilitado de conter.
Constitui ·"Summertime" em uma notável reussite do grande diretor ao conferir relevâcia a um "script" fadado ao supermelodrama a la Metro, equilibrando com perícia todos os excessos nesse sentido. Mesmo a famosa cena em que Rossano Brazzi diz à anti-heroina que "se quiser comer raviolli, como raviolli", digna da inveja de um Chano Urueta ou de am Tito Davison, consegue ficar aceitável na absorção total que o ritmo feérico de Veneza leva a efeito de qualquer dissonância - a maior, sem dúvida, a piada da dupla queda de Katherine Hepburn e de um gorducho no canal.
Aqui, cabe chamar a atenção para o trabalho do "camera-man", Jack Hyldiard, um dos melhores que conhecemos no trato e utilização da côr. São ruas, rios, multidões, relógios, riquezas históricas, tudo focalizado num fluxo trepidante de côres, uma taça vermelha que toma o primeiro plano e um magnífico pôr do sol que inclusive em muito se assemelha à concepção oriental do cinema japonês. Como homenagem à vida de uma cidade, não resta dúvida que o filme é insuperável e outrossim uma fabulosa propaganda de caráter turístico.
Mas, se o fotógrafo teve as honras no que tange a assinalar a parte positiva da fita, o "metteur en scène" teve-as também no que se relaciona ao neutralizar a parte negativa. "Tour de force" maior que o de Viscomti em "Senso", pois se nesta realização o jôgo operístico já estava pre-equacionado á uma autêntica sinfonia plástica posta em execução, em "Quando o Coração Floresce” foi uma solução arrojada para levar avante uma narrativa eivada de situações triviais ou detalhes de contra-senso. Assim o são o menino que acompanha a protagonista, o batido contraponto humorístico do engraçado casal de turistas americanos e a musiquinha de fundo, bonita, porém demasiado repisada.
Por outro lado, são diversas as sequências de valor construídas: o festival de fogos de artifício, féerie simbólica da noite de libertação da triste solteirona, a flor que corre o rio, a tomada final do trem. ·
Entre os atores, Katherine Hepburn avulta em soberba interpretação, malgrado alguns tiques excessivos. Rossano Brazzi discreto, outras vêzes bem aceitável - esta sua melhor atuação corresponde para Lean a um esfôrço próximo · ao de George Stevens ao conseguir tomar Allan Ladd sóbrio em "Shane".

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Como já foi frisado inicialmente, o apurado domínio de todos os instrumentos cinematográficos de que é dono David Lean, a sua admirável intuição em explorar os aspectos mais válidos de um "script" irregular, a sua flagrante versatilidade de criador fazem-no, por ora, o mais importante cineasta britânico, mais coeso que Reed, mais inventivo que Asquith, e num plano ainda superior ao de um Mackendrick, um Crichton, um Basil Dearden ou Robert Hamer. Qualquer das mencionadas fitas, com exceção de "História de uma Mulher", possui nível bastante alto no que tange ao seu mérito artístico, figurando com facilidade nos anos em que foram exibidas nas listas das dez melhores - algumas delas clássicas ou antológicas: ''Desencanto", "Oliver Twist", "Grandes Esperanças", "Papai é do Contra", em ordem mais ou menos decrescente.
Fora de seu país, a sua obra também se projeta como das mais eficazes como contribuição ao desenvolvimento da arte cinematográfica na atualidade.

Jornal do Brasil
06/10/1957

 
Uma Odisséia de Kubrick
Revista Leitura 30/11/-1

As férias de M. Hulot
Jornal do Brasil 17/02/1957

Irgmar Bergman II
Jornal do Brasil 24/02/1957

Ingmar Bergman
Jornal do Brasil 03/03/1957

O tempo e o espaço do cinema
Jornal do Brasil 03/03/1957

Ingmar Bergman - IV
Jornal do Brasil 17/03/1957

Robson-Hitchcock
Jornal do Brasil 24/03/1957

Ingmar Bergman - V
Jornal do Brasil 24/03/1957

Ingmar Bergman - VI (conclusão)
Jornal do Brasil 31/03/1957

Cinema japonês - Os sete samurais
Jornal do Brasil 07/04/1957

Julien Duvivier
Jornal do Brasil 21/04/1957

Rua da esperança
Jornal do Brasil 05/05/1957

A trajetória de Aldrich
Jornal do Brasil 12/05/1957

Um ianque na Escócia / Rasputin / Trapézio / Alessandro Blasetti
Jornal do Brasil 16/06/1957

Ingmar Berman na comédia
Jornal do Brasil 30/06/1957

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