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A realidade e os meios

Primeira tomada: recinto típico de qualquer repartição pública da Administração Direta ou Indireta - o funcionário X acaba de manuscritar suas informações ou de exarar seu parecer, num amontoado de folhas de papel (por sorte a caneta já é esferográfica, mas o clima respira o saudosismo da caneta-tinteiro, quiçá com pequena borla de veludo na tampa) – o texto é remetido para o datilógrafo Y - este último, penosamente, começa a decifrar os garranchos, borrões e correções, saltando por eles, às vezes em mergulho cego, até que tudo fique transposto, liso, limpo, bonitinho, atendendo à geometria das margens, parágrafos, ementas etc. & etc. - volta tudo para o autor e, como ocorre amiúde, o datilógrafo errou aqui ou ali, na interpretação das letras, do manuscrito - retorna para nova datilografia - e assim vai o pingue-pongue, que atrasa o andamento de processos e, em suma, as decisões a serem adotadas pelos vários órgãos. A datilografia, que deveria ser matéria obrigatória, a partir do âmbito do ensino médio, continua sendo assunto de iniciativa pessoal, marginal, tal como colecionar borboletas ou discos de Carlos Gardel.
Segunda tomada: os alunos que fazem trabalho de estágio e, principalmente, os professores que fazem trabalhos ou teses, no âmbito universitário, são obrigados a uma verdadeira gincana datilográfíca, por causa dos ditames de uma certa Associação de Normas Técnicas - nunca aprenderam datilografia, mas têm de entregar os trabalhos com diversas cópias, marginalização e espacialização perfeita em sua cronografia, jogos sofistiçados de grifos, aspas ou maiúsculas para as remissões ou citações, sem falar nos requintes de minúncias para as bibliografias ou notas ao pé de página - resultado: o pobre aluno ou o professor de salário ou vencimentos ainda pobres (mal conseguem competir com um balconista de camisaria), são obrigados a recorrer aos serviços profissionais de um datilógrafo, o único tecnicamente dotado para suplantar os quebra-cabeças da ANT - resultado: minguam-se ainda mais os salários, dificulta-se o andamento dos projetos universitários.

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Essas duas tomadas perfazem o ideograma de uma situação alienante, onde se cultiva o primado do artesanal na era da segunda revolução industrial. É a contradição entre o que se poderia chamar de realidade em bruto e os meios usados para se formar e colocar o indivíduo dentro e/ ou diante dela, tanto na área do ensino, como na da administração - o que, até, vem a dar no mesmo. Reflete, também, no que se poderia denominar de apropriação dá cultura .
Entende-se, hoje em dia, o ato de conhecer (principalmente nos centros mais urbanos, desenvolvidos) pela conjugação de três etapas: informação, comunicação e reprodução. A informação, em si, é o novo, a revelação de alguma coisa, que chega, normalmente, com o suporte da redundância, isto é, o velho, o já sabido, para que não ocorra choque cultural; comunicação é a mesma informação, acrescida do seu veículo, que pode variar ou alterá-la, seja em sua essência, alcance e ou catárse: exemplo - dizer a alguém que fulano se casou, ler a notícia do casamento nos jornais ou assisti-lo, via tevê, são três impactos diversos; reprodução é, atualmente, ao nível industrial, assegurar a permanência física, concreta, da informação (tipografia, fotografia, discografia, filmografia, etc).
Tal contexto de conhecimento passa, dia-a-dia, a ser de massas, alcançando, atingindo, muitas pessoas logo de uma vez. A velocidade da informação também é, paulatinamente, fulminante, graças ao poderio dos veículos: exemplo - Nixon na China e os vídeos iluminados, em volta do mundo, acompanhando as solenidades, visitas, passeios. Melhor ainda com a chegada dos astronautas à Lua.
Mas o paradigma da caneta-tinteiro com borla de veludo (ao fundo, quem sabe, o mata-borrão?) continua de pé. O envolvimento provém da realidade eletrodinâmica - muitos métodos de ensino permanecem vinculados à época mecânica, ao culto do artesanato. Há cerca de 40 anos, um escritor como Walter Benjamin, em
A Obra de Arte no Tempo das suas Técnicas de Reprodução, denunciou a "aura" do objeto - o objeto único, ainda válido, mas em condições e proporções extremamente diversas. Mas resiste a "aura" da irrealidade formativa.
Desde que nasce, o homem começa a ser envolvido pelos grandes veículos de comunicar ou reproduzir a informação: rádio, televisão, cinema, discos, manchetes, anúncios luminosos, slogans, etc. A escrita, há vários decênios, atingiu uma possibilidade de padronização mecanizada. Porém, os garranchos resistem. E, sem falar na já prosaica dactilografia, ninguém é instruído, em idade básica, a respeito dos meios que o envolvem. Pululam os currículos de literatura, mas nada de cinema ou tevê e suas técnicas. Pululam os desenhos, trabalhos manuais e as escolinhas de arte e nada de artes gráficas, tipografias, etc. Em suma, a dactilografia ainda é algo de secundário frente aos inefáveis exercícios de cáligrafia.
Depois a realidade. Como desmistificar os que se aproveitam dos grandes meios? Só há um modo: conhecendo o instrumento, o aparelho, o problema da forma.
O próprio sistema prepara as massas para serem iludidas e se conformarem no rodopio insano de locutores, animadores ou anunciadores. As dores têm seus doutores enfarpelados. Com relação à maioria dos centros de aprendizado, quase sempre, só escapa quem, na maré da grande contradição, embarca na perseverança do autodidatismo. Porque, este, também, por si, já denuncia a balela da especialização.

Correio da Manhã
26/03/1972

 
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Correio da Manhã 13/01/1966

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Os filhos que devem nascer
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Despir os Tabus
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Muro e Turismo
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Dogma & dialética
Correio da Manhã 10/09/1969

Forma e fonte
Correio da Manhã 16/09/1969

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