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Mitos e regimes

Mito, a grosso modo, poderia ser definido como uma espécie de concretização de concepções coletivas da verdade. Ou o dogma coisificado. Só que, no caso, estamos no terreno não-racional - não se trata do dogma de abstrações, provado dedutivamente até segunda ordem, consoante a evolução matemática e/ou científica. Trata-se, com reIação ao mito, de um processo indutivo - afetivo - que transfere um violento poder de convincência a pessoas, objetos ou idéias. Daí, infere-se o mínimo de estado mágico a quem confia ao mito, à catarse de sua presença ou atuação, inúmeras decisões que poderiam ser tomadas ou concebidas no plano da lucidez realista.
Sob o ponto de vista filosófico, o enfoque dado ao problema resultou em inúmeros estudos profundos (no caso, a leitura de Cassirer é básica e lapidar), com posições heterogêneas. Para Max Müller, por exemplo, o mito era uma "doença da linguagem", nefasto como forma de conhecimento. Para Nietzsche, de outro lado, o mito era a salvação, fonte de vigor da humanidade, dentro de sua idéia de antepor o mundo de Dionísio ao de Apolo.
De qualquer modo, é importante notar que, apesar de todo o avanço científico e tecnológico intensificado nos tempos modernos, a presença do mito não foi expurgada, mormente no comportamento cotetivo. Veja-se mesmo, no âmbito da política, o esfôrço em diversas ocasiões de extirpar o caráter mítico das lideranças (os carismas, os homens messiânicos ou até os homens públicos de conduta puramente carnavalesca) e que se esbarra no imponderável emocional. Cassirer, numa obra do maior interesse, como
O Mito do Estado, focalizou a genealogia do mito político através da história, desde a antiga civilização grega até a idade contemporânea. E pedia, ao fim desta obra, quase que um remédio utópico; ou seja, que o artista (e a arte, para ele, tal como o mito, era uma forma simbólica) produzisse cada vez mais obras para enfraquecer a avalancha mitológica. Talvez porque, alarmado com os efeitos, estivesse escrevendo à sombra do mais poderoso mito político do século (pelo menos, no mundo ocidental) que foi Hitler. Na verdade, para o caso, o diagnóstico de Müller daria resultados tremendos: ditadura, torturas, guerra, genocídio. Quanto aos regimes socialistas, ainda não conseguiram superar essa contradição de ser impossível evitar a predominância do mito: ou o concreto, encarnado em pessoas (Mao, Fidel etc.), ou o abstrato, quer dizer, a imanência do próprio Estado, que, como na União Soviética, gera os horrores kafkianos e liberticidas do regime burocrático.
Talvez o estágio mais saudável, em matéria de antimito, seja o do anarquista puro, pelo próprio fato de que o estar anárquico já pressupõe, de saída, o desconhecimento de qualquer espécie de autoridade. Seria o auge daquilo que, em Anarchy and Order, Herbert Read identificou como a liberdade esiencial (em inglês, freedom em contraposição a liberty - em português inexiste palavra a permitir a diferenciação conceitual). Mas como a opção anarquista só pode traduzir, aceitavelmente, um estado de espírito, já que, levada à ação, seria anti-social, depreende-se que ainda não se descobriu regime mais lúcido e equilibrado do que a velha democracia. Tudo o que é democrático é autovacinável. O erro de quem, pensando no bem dela, suspende a democracia, temporariamente ou não, a fim de evitar o desenvolvimento de idéias ou lideranças nefastamente mitológicas, é o de estar trocando um mito por outro. Pois a parábola de Breton se aplica a tudo: a liberdade é a condição básica para a objetividade.

Correio da Manhã
18/09/1969

 
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Correio da Manhã 31/10/1965

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Correio da Manhã 13/01/1966

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Correio da Manhã 10/09/1969

Forma e fonte
Correio da Manhã 16/09/1969

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