De início, uma breve complementação para este livro do maior interesse e com relação a um dos seus personagens mais pitorescos: Celestino Paraventi. O dono do café do mesmo nome, da rua Barão de Itapetinga, rico, "personalidade exuberante", como diz o autor, dotado para a chamada arte lírica, amigo de Luís Carlos Prestes e um dos receptadores do dinheiro que enviavam de Moscou, deixou gravações de discos para o selo Odeon - quem sabe? - às suas próprias expensas. Uma delas apresenta na face A a valsa brasileira "Teu beijo", e na face B o samba "Teu desejo é ver-me sofrer". O acompanhamento é feito pela Orquestra Paulistana; aliás, bem aparelhada. Pelo número do disco - 10675 - comprova-se com segurança que data era a de 1930. Quanto à voz, Paraventi rimava com Gastão Formenti.
"Camaradas - A história secreta da revolução brasileira de
1935'', com bela epígrafe extraída de Betolt Brecht, é um livro importante principalmente porque quase tudo que através dele se desenrola vem baseado em farta documentação escrita, suplementada por entrevistas posteriores. Até então, este período de nossa história não tinha relatos com suporte de tal poder. Basta passar os olhos pela imensa sequência de notas ao fim do volume. Em suma, há um índice de siglas e uma bibliografia.
A massa de informações a ser manejada era de tal ordem, a grande reportagem tão absorvente que, talvez exatamente por causa disso, nem sempre a fluência do relato manteve-se impecável diante da necessidade de encadeamento dos fatos numa espécie de romance e documentário em mezzo a mezzo. De qualquer maneira, outras exigências estilísticas são pormenores. Para os aficcionados, quem transita por história e politica, "Camaradas" é deglutido de fio a pavio, devorado de cabo a rabo. E o alto jornalismo: pesquisa,
revelação, isenção.
William Waack, em sua introdução, fala de como nasceu o livro, de sua elaboração e termina assinalando que fica inevitável o profundo abalo de mitos, imagens, carreiras, reputações e crenças. Logo de início, então, o personagem central, Luís Carlos Prestes. Não imediatamente por motivos éticos, mas em decorrência do sectarismo, da auto-suficiência. Osvaldo Peralva, por exemplo, em "O retrato", que é um livro-depoimento sobre a militância no Partido Comunista Brasileiro durante um período do pós-guerra, já havia assestado lanças contundentes sobre o Cavaleiro da Esperança. Tentou mostrar a deformação de uma personalidade causada pelo bolchevismo e aquela vulgarização de teses gerais, aplicada de modo unilateral, superficial e esquemático.
Do Komintern ao PCB. Troca de idéias no diagramar da barafunda, mensagens e informações em forçosa colcha de retalhos, palavras de ordem mal nutridas pela realidade. Ou o vem-não-vem do famoso ouro de Moscou que, afinal, veio. Tudo isso para gerar os rápidos levantes no Nordeste, ou a "intentona" aqui, no Rio de Janeiro. Daí, à beira do apagar de luzes do ano de 1935: prisões, desaparecimentos, torturas, assassinatos, por obras e graça da nossa edificante polícia política. Aliás, uma minicontrapartida, à direita, do grande terror inaugurado por Stalin.
Dentro de um painel tragicômico, a leviandade e a irresponsabilidade, de mãos dadas, a fim de fazer uma revolução sem a menor base. Os comunistas daqui, misturados com os técnicos e instrutores enviados do exterior. No meio do caos, destacam-se grandes personagens, frases, eventos, situações. A começar pelo já mencionado Paraventi ou o espetacular Jonny de Graaf, o especialista em explosivos importado. Ditos, como "a coisa vai bem entre os militares e mal entre os operários" (de um dirigente sindical) ou "em São Paulo não era possível saber onde terminava o partido e onde começava a polícia" (de um comunista argentino) falam tudo. Ou "a balalaica desafinada" (no elogio a Abramov). Ou o mesmo Prestes que, antes da aprovação do Komintern, era considerado "o Chiang-Kai-Shek brasileiro"? (relatório de Berger).
A descrição da trajetória, fuga e liquidação do casal Stuchevski o acaso de Marga e o vendedor de sorvetes, o refúgio no Méier, são alguns entre os vários trechos e passagens de uma narrativa sempre envolvente. E desalentador. O PCB parecia uma sociedade esotérica de iniciantes tumultuados. Só um tinha o dom do Verbo. E alguns sabiam que a pedra filosofal vinha de Moscou. Lá, o terror e a desordem. O comunismo da União Soviética nada tinha de confuciano. Aliás, nem também o chinês...
Depois da borrasca brancaleônica, sobraram idealistas desiludidos, desnudos diante dos fatos. Valeu a pena? Com a palavra Fernando Pessoa.
O Globo
07/11/1993